sexta-feira, abril 27, 2007

Até tu, Ian

Por volta dos meus 15, 16 anos de idade eu conheci o Jethro Tull. Foi uma revolução no meu conceito de Rock’n’Roll. É daquelas bandas das quais não damos muita bola na primeira vez que ouvimos. Mas passa um tempo e vem aquela vontade irresistível de botar o disco de novo. Até tornar-se um vício, a ponto de ouvir cinco vezes o “Aqualung” inteiro sem tirar do aparelho. Nas conversas de bar com a turma rocker, o Jethro sempre figurou entre “as quatro bandas fundamentais”, junto com Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple. Claro que com algumas reclamações iradas do tipo “sem Beatles e Rolling Stones eu saio dessa mesa”, ou “meu Deus, não dá para conversar com radicais como vocês”.
De qualquer forma o que vale é a ilustração de que a banda é uma das pedras fundamentais do Rock. Afinal, não é à toa que eu tenho tatuada a capa do “Too old to Rock’n’Roll, too young to die” nas costas.
Eis que essa semana o Jethro Tull veio para Porto Alegre. Única apresentação, segunda-feira, no Teatro do SESI. Infelizmente não pude ir. Questões econômicas (o preço do ingresso, R$ 100, é quase um quarto de meu salário, mais o show do Nazareth) impediram minha presença. Mas tivemos representantes lá, e todos foram unânimes em afirmar que foi um verdadeiro espetáculo, com direito a “uma versão muito louca de ‘Aqualung’”.
Ontem, numa janta de pinhão e vinho lá em casa, entramos no assunto Jethro. Foi unânime a reclamação de que eles deveriam tocar num lugar maior para cobrar um preço mais acessível. Até que alguém se levanta e diz: “eles não querem tocar para grandes públicos porque não são mais uma banda de Rock”. Espanto geral, todos atônitos. Como assim não são mais uma banda de Rock? “Foi o próprio Ian Anderson que disse”.
Vou pesquisar e lá está, no site Whiplash: “Em entrevista realizada pela jornalista Juliana Girardi, da Gazeta do Povo, o vocalista Ian Anderson afirmou que o JETHRO TULL não é uma banda de Rock e diz que um bom show tem de ter doses de confusão e dúvida; confira abaixo um trecho: "Acho que o Jethro Tull seria muito mais conhecido se fôssemos uma banda de rock pesado. Se ainda hoje tocássemos como na época das turnês de 'Aqualung' e 'Thick as a Brick' seria como uma “quick fix” (dose mínima para atingir o efeito de uma certa droga), como uma picada de heroína ou uma carreira de cocaína, seria como uma forte dose de uma droga poderosa. Mas eu não me interesso por drogas de nenhum tipo”.
Que ele não queira tocar em estádios, nem ser comparado com uma droga, tudo bem. Agora, o que isso tem a ver com não ser mais uma banda de Rock? Que declaração infeliz. Podia muito bem ter falado assim: “nós somos uma banda rock diferente, queremos impressionar os fãs a cada show”, ou qualquer outra coisa. O que ele não pode é desrespeitar toda uma história construída em mais de 40 anos de carreira; seus fãs, pessoas que acreditam no Rock’n’Roll. Se ele tem o sonho de tocar em orquestras para a elite, que faça um teste para a Filarmônica de Berlin.
O Jethro é, sim, uma banda de Rock, mesmo que o senhor Ian Anderson não queira. Termino com uma sugestão: troque o nome do seu conjunto. O Jethro Tull não é mais seu, é de todas aquelas pessoas que nos últimos 40 anos compraram seus discos e acreditaram quando o senhor gritava a todos pulmões: “i’m never too old to Rock’n’Roll”!

P.s.: Enquanto isso, os Rolling Stones estão fazendo show de graça na praia e cheirando as cinzas dos pais.

terça-feira, abril 24, 2007

O Inevitável

Tudo parado no sábado de tarde, sem sol, sem chuva, sem vento; só gritos, de crianças, de carros e ônibus que desfilam sem cessar pela passarela da vida cotidiana. Pobres e ricos se misturam no frenesi de suas casas, hospitais da alma e do corpo, em florestas artificiais que nos trazem uma paz artificial para nossa vida artificial. Eu, eu tento molhar minha garganta com um pouco de água morna que a duras penas puxo pela bomba entupida. Olho meu pé, penso em cortar as unhas, só penso; penso em ouvir um som, só penso; telefone, nem pensar, que me deixem só, podia até tirar da tomada, mas não vale o esforço, ninguém vai ligar.
Acredito no que dizem, que o mundo não tem mais nada além das poesias e profecias das mesas dos bares por onde ando. Acredito, mas tenho uma casa e uma cadeira, tenho ar e tenho este pensamento ridículo de que eles estavam certos, de que as palavras não valem mais nada, inclusive a suas, que ecoaram pela cabeça ébria de orelhas dispostas e boca sedenta. Paga aí que eu ouço tudo, e acredito.
Meus vícios são só vícios, não estou fugindo de nada, se bem que posso estar fugindo de nada. Ainda bem que não tem sol, nem chuva, nem vento, só aquele mormaço estranho de inverno quente, que faz o corpo suar porque tirar o agasalho parece ridículo no inverno. Nem isso é mais igual aos tempos de criança, inverno não é mais frio, sonhos não se tornam mais realidade, na verdade, sonhos não aparecem nem mais em sonhos. A realidade prende e paira no tempo que arrasta para o destino comum de todos.
Poderia estar acompanhado agora de alguém que não conheço. Não, não tenho mais paciência para esses jogos que se desenvolvem, palavras de duplo sentido, palavras sem sentido, e no fundo um arrependimento com raiva e enjôo. Acordar só é uma grande coisa. Sou só, único responsável pela mediocridade alegre ou triste que acorda comigo.
O silêncio de dentro está muito grande, nada interrompe a seqüência de pensamentos desconexos, meio reais, meio devaneios que não controlo. A preguiça assumiu controle total. Senão, poderia fazer algo, nem que fosse esquentar mais água. Calço os chinelos, olho em volta e sinto como as pálpebras estão pesadas; resquícios. Num esforço extremo levanto e entro na sala. Olho em volta, até que está bem arrumada, os discos espalhados e os recortes de revista, tudo no lugar. Arrumado não é limpo. Vou para a cozinha, a pilha eterna da pia está menor, dá para colocar a chaleira em baixo da torneira. O gás deve estar no fim, a chama alta mal e mal sai da boca. Tomara que esquente minha água, não quero ter perdido todo meu esforço. Acendo o último cigarro para esperar, sempre um cigarro para esperar, e assim vou me matando; bobagem, todos estamos nos matando, só de respirar, ar dá câncer.
Terminou, o gás. Não dá nada, a água ficou morninha, dá para o gasto. Acho que agora podia botar um som, realmente tá muito silêncio aqui. Paro na frente dos discos, sempre os mesmos discos. O telefone também está mudo, olho um pouco, não vai tocar. Volto aos discos, um blues, um rock, rockinho, nada pesado, quem sabe nacional, não, blues mesmo. John Lee confessa sua dor na minha sala.
Até parece ser um bom dia, não estivesse quase no fim, quase novamente noite para mais uma vez entregar tudo ao inevitável. Antes vou curtir esta metamorfose, este momento raro em que o céu fica verde aos nossos olhos já não tão correspondentes à realidade que todos querem ver. É claro, imaginamos, mas não são imaginações tudo aquilo que vivemos por conta do pensamento alheio, pensamento de TV, de grandes verdades proferidas dia a dia pelas mesmas bocas, nas mesmas horas?
Meu Deus, ainda tenho um cigarro! Como fui ter este gesto involuntário de apalpar o bolso da camisa? Logo ele, sempre esquecido, relegado a segundo plano, guarda a chave da minha morte e minha tranqüilidade. Bendita fumaça que preenche os pulmões e manda tudo o mais para o inferno. Todas as coisas que deveria ter feito hoje e não fiz. De propósito porque me entregando ontem já sabia que nada seria feito, que toda a esperança é inútil e que a desgraça sempre acompanha a alegria.
Pelo menos ela está ali, e é nela que vou depositar toda minha dor e minha esperança, meus medos e minha força, toda esta abençoada desgraça que dia após dia povoa minha mente de inspiração e desejo de percorrê-la com meus dedos até o sangue. Deusa que tantos homens já levou para o túmulo, que domina vidas, sonhos e sentimentos. Má companhia que insistentemente carregamos nas costas e mesmo jogada a um canto controla nossas vidas sabendo que mais cedo ou mais tarde teremos que acaricia-la no afã de esquecermos relembrando tudo.
Acabou o cigarro, acabou a bebida, o telefone continua mudo, e lá me vou com minha guitarra ao desconhecido da noite.
Outra vez.

quinta-feira, abril 19, 2007

Nazareth e a morte do Rock'n'Roll

O Rock’n’Roll está, de fato, nos seus últimos suspiros. Hoje já não existe mais amor ao som. Ninguém quer saber de curtir uma boa festa. Sim, é isso mesmo, e vou tentar explicar com um exemplo prático.
Show do Nazareth, no bar Opinião em Porto Alegre. Estou saindo de casa e dou de cara com um grande rocker, que não via há tempos: Jaime Rocha. Nos abraçamos e ele me olha, sério: “cara, tu acredita que eu não achei um gato pingado para me acompanhar no show?”. Infelizmente tenho que acreditar. Há uns cinco anos teria excursão de Caxias, ingressos esgotados, cambistas, engarrafamento. No entanto, esta parece uma quarta-feira como outra qualquer, talvez até mais quieta. Nas duas quadras que andamos até o Opinião, nenhum movimento de camisas pretas, os bares da José do Patrocínio estão com mesas sobrando, na rua os ônibus seguem com seus trabalhadores para casa.
Entramos em cima da hora, sem fila e sem revista. E aqui ponho um ilustrativo paralelo. Recentemente fui ver a Nação Zumbi, no mesmo local, e nem preciso contar a confusão que estava instalada na rua. Depois da fila, o segurança quase me vira do avesso, procurando não sei o quê, e ainda me olha brabo. No show do Nazareth (vejam bem, uma das mais importantes bandas de Rock da história!), nada, e o mesmo segurança ainda faz uma reverência ao entrarmos no bar.
De qualquer forma lá estamos nós, e o show começa. Rock’n’Roll. Não é à toa que eles são o Nazareth. Depois da introdução já vem uma paulada nos ouvidos: “Razamanaz”. Um clássico, e o público vai ao delírio. Só depois dessa música é que me dou conta de que estou na beira do palco. À minha direita, umas 500 pessoas; à minha esquerda, ninguém. Ainda meio chocado vou pegar uma cerveja. Do mezanino até parece que tem mais gente. Vejam que estou procurando uma alternativa para aplacar minha vergonha. Claro, trazer os caras lá da Escócia, já consagrados por décadas e décadas de carreira, para tocar para meia dúzia de gatos pingados aqui em Porto Alegre, a “cidade rocker”, é uma vergonha.
De qualquer forma vou para o bar, e quase tenho que acordar as garçonetes. Volto para a pista e me abraço na minha namorada para ouvir “Dream On”, que automaticamente passa a ser a “nossa música”. A seguir, uma sucessão de hits: “Telegram”, “This Flight Tonight”, em “Hair Of The Dog”, Dan McCafferty entra com uma gaita de fole e faz um som inacreditável. Novamente delírio na platéia.
Presto atenção em Pete Agnew, e aquele senhor de fila para idosos está totalmente absorvido pelo som. Sua emoção é contagiante. Sem falso sentimentalismo, chegam a me brotar lágrimas nos olhos. Até porque depois de mais de duas horas de puro Rock’n’Roll eles atacam de “Love Hurts”. Nem o mais carrancudo dos motoqueiros resiste e ergue os braços: “love hurts, love hurts”....
Na saída encontro o Rafa, guitarrista da Só Creedence. Comentamos o show e outras amenidades, quando vamos tocar novamente, essas coisas. Lá pelas tantas ele me olha e diz: “Cara, em que shows eu vou levar o meu filho?”.
Meu amigo, o Rock’n’Roll morreu. Essa é a triste realidade.

quinta-feira, abril 12, 2007

A violência das ruas

Olhava eu um programa de TV, quando um senhor enche o peito para dizer: “não se pode mais andar a pé pelas ruas”. Todos concordam. Isso que não são nem tão velhos assim. Imediatamente penso: que tipo de louco sou eu? Sim, porque parecia uma obviedade unânime o fato de não se poder mais andar pelas ruas.
E fico me perguntando o motivo. Será o calor senegalês desses verões de aquecimento global? Quem sabe o calçamento irregular esteja provocando muitos tornozelos quebrados? Muitas pessoas, aquele cheiro de asa, gritos, “CD e DVD”, “vale, vale, vale”?
Passemos a brincadeira. Os senhores engravatados estão muito preocupados com a violência. “Assaltos”, dizem eles, “por todos os lugares as pessoas estão sendo roubadas”. Este já parece um texto muito interrogativo, mas insisto: como sabem de tudo isso se não andam mais pelas ruas?
Na verdade eles têm medo dos pobres. Medo daqueles jovens esfarrapados e com cara de mau que ousam olhar pela janela dos seus Mercedes e pedir uma moedinha. Medo do mendigão que dorme bêbado sob as marquises. Das crianças-zumbi com seus paninhos na boca e tubos químicos no bolso.
Pobres senhores. Mas sinto pena mesmo dos seus filhos. Minto: na verdade eu sinto medo dos seus filhos.
Eu, quando criança, por uma incrível luz pedagógica de meus pais, andava só pelas ruas de Caxias do Sul. Bem, talvez eu esteja supervalorizando a educação familiar, já que naquela época a violência não era o assunto da moda. Eram tempos de inflação, corte de zeros, congelamento de preços, etc.
O fato é que eu andava pelas ruas, e lembro de coisas fantásticas. A prateleira de discos da loja Hermes Macedo, o homem que se embalava com a cuia de esmola em frente às Livrarias Paulinas, as prostitutas da praça, o cheiro de cachorro quente das barraquinhas, o sabor dos churros, as placas brilhantes do Bazar Nair. Mas lembro também de todas as vezes que fui assaltado.
Tinha eu entre 9 e 12 anos e os pivetes, aproveitando-se de minha latente ingenuidade, levavam meu dinheiro do lanche, meu relógio, até meu caderno. Voltava desolado para casa, reclamando a perda. Meu pai, insensível, simplesmente dizia: “acontece”. Acontece! Como assim acontece?! “Eles não têm dinheiro, então pegam de quem tem”. Uma explicação furada, eu pensava. Afinal, aquelas coisas eram minhas. E lá ia eu novamente para a rua, e voltava assaltado.
Até que fiquei mais velho e comecei a “pegar as manhas” da calçada. Primeiro sabia onde não andar. Depois já os olhava no olho, com uma cara de “nem vem que comigo não rola”. Parti para as madrugadas e lá descobri que somos todos iguais. Na verdade é o próprio medo que chama o roubo. Em pouco tempo já jogava bola com os caras que antigamente levavam meu dinheiro do lanche.
Sigo sendo assaltado, mas o sangue frio que adquiri me livrou de várias. Hoje converso com quem vem me roubar. Nunca usei de violência, só de palavras, e tenho sido bem compreendido.
Voltemos aos filhos dos senhores engravatados.
Essas crianças vivem trancadas. As ruas que conhecem são as do condomínio fechado onde vivem. Talvez as avenidas que levam ao clube ou ao colégio, tudo por trás dos vidros blindados e na companhia de seguranças. E assim será até a faculdade, quando ganharão um carro para ir às aulas.
Agora vamos ao meu medo. Imagino o dia que terei que falar com uma dessas crianças, que no futuro serão as pessoas importantes da sociedade. Se eu não estiver com a roupa adequada, pedir as horas e fizer um movimento brusco, sou capaz de tomar um balaço na cabeça. Afinal, nunca se sabe: a violência está por todos os lados.