quarta-feira, dezembro 29, 2010

Utopia

Ainda tem gente que pensa sobre coisas impensáveis. Coisas importantes. Gente que faz os pesquisadores sérios darem boas gargalhadas. Por que será que as pessoas deixaram de pensar no mundo perfeito? Não é um crime. Não é ridículo. Será que a dominação dos nossos corações e mentes chegou a um ponto tal que eliminou nossa imaginação?

Pensamentos....

Alguém consegue imaginar a intelectualidade brasileira pensando sobre a Utopia? Sobre o sincero desejo de viver em uma sociedade justa e livre?

"Deus o livre!"

“Isso não leva a nada”.

“Deixa de sonhar”.

Como, se o sonho é o único refúgio para a prisão do dia a dia, para os dissabores de uma opressão contínua que sequer sentimos, mas transforma nossa vida no nada absoluto de sempre correr atrás da máquina. E nunca alcançá-la. Correr por um trabalho, correr para pagar contas, correr contra o relógio, correr para se alimentar, correr para fazer festa, correr para o amor. E nunca alcançá-los.

Sim, pensar sobre a Utopia. Pensar sobre coisas melhores. Ter fé na humanidade. Coisas ridículas para uma sociedade escravizada como a nossa. Na melhor das hipóteses taxadas como conversas de bar, mas nunca levadas a sério. Sonho. Sempre melhor que um pesadelo. Ousar ter consideração pelo próximo. Ousar se sentir mal por ter irmãos dormindo nas ruas enquanto outros andam em carros blindados pelas avenidas asfaltadas. Ousar pensar em uma terra de todos e para todos. Ousar a libertação de todo trabalho escravo que paga um salário de miséria. Ousar pensar em um mundo onde todos são respeitados exatamente por aquilo que são, longe dos padrões impostos pelo poder. Ousar um mundo sem poder de uns sobre outros.

Utopia. Sempre imaginária, mas sempre em busca dela, sempre avante na busca por uma sociedade de todos. Utopia. De novo: alguém consegue imaginar a intelectualidade brasileira pensando sobre a Utopia? Não. Tive que atravessar o oceano para ver que não é tão ridículo ter esses pensamentos. Pego nas mãos o livro “A Utopia, refundação de uma idéia e uma história”, do professor Arrigo Colombo. Apenas um dos volumes da coleção “Utopia: por uma sociedade justa e fraterna”, editados através de uma parceria entre a Editora Dédalo, de Bari, e o Centro de Pesquisas Sobre a Utopia da Universidade de Lecce. Ou seja, tem gente séria que pensa sobre sonhos, com o desejo real de transformar, pelo menos um pouco, essa loucura que tomou conta da humanidade. E agora não me sinto mais um louco. Tem gente assim também. Gente séria. Que prefere sonhar a viver em um pesadelo. Quem sabe um dia, ah, quem sabe um dia....

terça-feira, dezembro 28, 2010

Frio do caralho

Não tem outra expressão melhor: frio do caralho. O termômetro marca -2 graus mas a sensação é de -5. O que não faz a menor diferença. Ou por acaso alguém pensa que -2 é mais confortável que -5? Nem o sol faz diferença. São 11 horas da manhã no centro do mundo ocidental, a base da nossa civilização racional e humanista. Enquanto os filhos de uma Itália do passado circulam, em meio a turistas e a nova geração sem futuro, alguém tenta ganhar a vida. São africanos, árabes, latino-americanos e estudantes, estes últimos a raça mais discriminada do país. Para pagar as contas e comer eles se sujeitam aos subempregos do mundo desenvolvido. Nesses dias de frio do caralho, o pior deles é a panfletagem. Três horas parado numa esquina congela até a alma, para ganhar sagrados 6 euros por hora de tortura. Depois de meia hora a mão direita não sente mais nada. Já se distribui os panfletos de 2 em 2, 3 em 3. E a cara de nojo. Chega a ser engraçado. Parece que o cidadão que distribui o papelzinho de propaganda tem uma doença contagiosa. Como se não estivesse frio o suficiente ainda tem que agüentar a mal educação dos outros. Pega a porra do papelzinho e joga na lixeira, mas ajuda o vivente que está ali parado como um verdadeiro bloco de gelo. Tem aqueles que nem olham, outros que agradecem, mas não pegam. O pior, porém, são aqueles que tiram a mão do bolso e fazem que não com o dedinho enluvado e aquecido. Se não quer pegar porque ta frio, nem tira a mão do bolso, filho da puta. Tudo bem, que se foda. Falta só mais uma hora. A essa altura as pernas também já congelaram, mesmo com três calças e duas meias em cada pé. Relógio a cada dois minutos e os ponteiros ali, parados. Parece que também estão rindo da desgraça alheia. De repente chega uma velha com cara de boa senhora.

-É meu filho, vocês são o futuro da Itália.

-Pois é senhora.

-No meu tempo ninguém precisava fazer isso pra viver.

-Pois é senhora.

-Nosso país não é mais o mesmo. Uma vez as pessoas estudavam de graça, depois arrumavam emprego, podiam sustentar a família com dignidade. Tu é estudante, né? Eu sabia. Hoje em dia é assim. Mas não te preocupa. As coisas vão melhorar.

-Pois é senhora.

-Sabe que meu filho também começou assim. O primeiro emprego dele foi distribuir panfletos para poder pagar a universidade. Agora ele trabalha na administração de uma empresa faz oito anos. Eu sei que vocês vão conseguir.

-Pois é senhora.

Graças a deus a velha foi embora. Se o cara que circula fiscalizando os panfleteadores pega uma conversa dessas o cara ta fudido. Aí a Itália antes de não ter futuro já perde o presente e ganha mais um mendigo nas ruas. E tem mais, diz pro administrador lá que o negócio ta ruim e que ele se lembre da merda que é ficar na rua com -2 graus quando pedir “experiência”, “diploma” e “conhecimentos técnicos” aos jovens que buscam um emprego na sua firma. E enfim chega ao fim. Deus abençoe as bibliotecas públicas com calefação. A mão dói quando o sangue volta a circular. A tremedeira começa a diminuir e o cara descobre que está todo sujo de ranho porque não sentia a cara pra saber se estava escorrendo ou não. E isso garantiu mais 20 euros para as contas da família. Com isso dá pra pagar 1/45 da prestação da faculdade. Não dá nada. O importante é voltar pra casa e tomar um banho, porque daqui a duas horas começa o turno de garçom no bar. E já que estamos citando deus e estamos no centro do mundo católico: que ele abençoe os escravos da civilização, o futuro da nossa humanidade.

segunda-feira, dezembro 27, 2010

Cerveja Guiness

Guiness, porque o cara é pobre mas sabe beber com estilo. Nem que seja uma cerveja. Só uma, porque a porra do copo de Guiness vale 4 euros. Mas vale a pena. É um creme, como diz o outro. Néctar dos deuses. Líquido sagrado. Imaginem os outros adjetivos por conta. Não é só uma cerveja, senão eu não estaria escrevendo uma porra de um texto sobre uma porra de uma cerveja. E tem mais, tô a fim de escrever palavrão e escrever errado também, porque eu queria estar de ressaca de Guiness, mas não estou. Estou com a merda de uma ressaca de um vinho barato e cerveja Holandia que usei pra me embriagar. Na real, Holandia não é cerveja. É mijo de holandês em latinha com um pouco de álcool. E o vinho.... uma garrafa por 2,5 euros só pode ser uma bosta de vinho. O gosto lembra o chulé e as frieiras do cara que pisou a porcaria da uva. Não que eu já tenha provado chulé e frieira de camponês, mas dá pra entender, e se não quiser entender vai tomá no cú, porque nessa porra dessa cidade não tem uma farmácia aberta porque todos os maledetos italianos estão de férias de inverno. E ainda reclamam que o país tá uma merda. Também! Ninguém quer trabalhar nessa merda! Só os indianos e banglas que vieram da pobreza da Ásia trabalham aqui. E aí eu chego pra comprar uma fruta e o imbecil não me entende, porque não sabe falar italiano, e eu não sei falar indiano e aí já saio puto da cara num frio de rachar me tremendo todo porque esqueci que era frio aqui nessa merda e não botei todos os meus blusões de lã, nem as luvas, nem a porra da touca, porque me dá um gelo na careca, porque eu to ficando cada vez mais careca e só me falta começar a neve porque eu to de All Star e meu pé vai congelar e.....

Sim, a Guiness é uma baita duma cerveja. Mas é uma cerveja pra rico. Proponho aqui a revolução dos ressaqueiros de vinho e cerveja ruim. Invadamos a fábrica da Guiness, os pubs, os supermercados e vamos acabar com a nossa ressaca!!!

Guiness de graça para o povo!!!

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Velhas e sempre novas utopias

“A maior parte dos chefes de Estado se ocupam com maior prazer de coisas militares do que boas ações de paz, e se esforçam com maior rigor a descobrir como conquistar, bem ou mal, novas fronteiras, do bem governar aquelas que já têm.”

“Nem um simples furto é em si um grande delito, que se deva condenar à morte, nem existe pena tão grande que impeça de roubar quem não há outros meios para procurar o que comer. Neste quesito me parece que não só nós, mas boa parte do mundo fazemos como aqueles maus professores, que preferem punir os jovens do que instruí-los. Se estabelecem na verdade, para quem rouba, penas graves, penas terríveis, enquanto o melhor era dar-lhes algum meio de subsistência para que ninguém se visse na necessidade de roubar.”

“Quando se dá o caso que um só devorador insaciável, peste insaciável do próprio país, agregando campos a campos, feche com um só recinto vários milhares de hectares, os cultivadores são expulsos e, iludidos com enganos ou vítimas da violência, são espoliados das suas propriedade ou obrigados a vendê-las. Enfim, de uma forma ou de outra, vão embora aqueles desgraçados, homens, mulheres, maridos, esposas, órfãos, viúvas, pais com seus filhos e uma família mais numerosa do que rica; vão embora dos seus lares habituais sem encontrar lugar onde recuperar-se, vendem a preço baixíssimo os próprios pertences. E quando já não têm mais nada, o que lhes resta senão roubar?”

“Eu sou plenamente convicto que não é possível distribuir os bens em maneira igual e justa, ou que prosperem os negócios dos mortais, sem abolir totalmente a propriedade privada! A propriedade privada condena à indigência a maior ( e melhor) parte da humanidade. Erradicar a miséria talvez não seja possível, mas com o uso da razão se pode aliviar-la.”

“Cada um deve fazer o seu trabalho com solicitude, porém sem se cansar como um animal de carga que trabalha desde a manhã cedo sem parar até tarde da noite, coisa que seria uma pena indigna até mesmo de um escravo. Porém tal é, mais ou menos, a vida dos operários em todos os países.”

“Onde tudo se mede com o dinheiro, se exercitam necessariamente muitas artes completamente sem sentido e supérfluas, a serviço somente do luxo e do capricho.”

“Um motivo justo para a guerra é se um senhor tem um terra que não usa, antes a mantém vazia e inútil sem permitir o uso e a posse a outros, que, segundo as leis da natureza, precisam de um lugar para produzir seu alimento.”

“A cobiça é produto somente do orgulho dos tiranos, que se vangloriam em superar os outros sustentando o supérfluo.”

“Eles se espantam que exista qualquer mortal que se deleite com o duvidoso esplendor de uma gema de ouro ou uma pérola, quando se pode contemplar qualquer estrela do céu e também o próprio sol, ou que exista alguém tão tolo de se achar mais nobre aos próprios olhos por usar um fio de lã mais sutil, se a verdade é que esta lã, por mais sutil que seja o fio que dá, a carregou uma vez uma ovelha, que mesmo assim permaneceu para sempre uma ovelha.”

“Quando esses dois males, o favoritismo e a corrupção recaem sobre os juízes, imediatamente desaparece a justiça, o nervo fundamental de um estado.”

“Qual maior riqueza pode existir que, extinta qualquer preocupação, viver com animo correto e sereno?”

“Que justiça é essa que um nobre qualquer, um comerciante de dinheiro, um usurário, enfim um outro qualquer daqueles que não fazem nada, ou aquilo que fazem não acrescenta em nada ao Estado, possam viver com luxos e esplendor; no mesmo lugar em que um operário, um cozinheiro, um lenhador, um camponês, com um trabalho grandioso e ininterrupto como uma mula, necessário, tanto que sem esse nem um ano poderia durar qualquer estado, ganham assim tão pouco, vivem uma vida tão miserável?”

“Examinando em qualquer lugar e considerando os Estados que hoje se apresentam, não me parecem outro que um grupo de ricos que sob o nome e pretexto do Estado, não se ocupam de nada que não seja os próprios interesses.”

Chega por aqui. Por acaso os recortes de texto citados têm alguma relação com a nossa sociedade de hoje? Penso que sim. Porém, foram escritos em 1515 por um jovem advogado e religioso inglês chamado Thomas More no livro “A Utopia”.

O que mais me espanta é que os apelos à razão humana não começaram com More. Lá se vão quase 2,5 mil anos que Platão escreveu sua República e desde então pensadores têm trabalhado para desenvolver um sistema social que seja o mais justo possível para todos. Existem muitas diferenças entre esses sistema, mas também muitas semelhanças. Certo é que em todos se faz um apelo à razão como única ferramenta capaz de acabar com a desigualdade e a miséria do mundo. Infelizmente parece que ainda estamos muito distantes do dia em que poderemos nos considerar animais racionais. E não são só os governantes. Se o povo fosse racional já teríamos mudado a situação a muito tempo.

sábado, dezembro 18, 2010

Noites em branco

Confusão mental. Noites em branco, se é que me entendem. Neve. Frio. Calor. Parece um filme, a vida. Longe do poder e sem poder para poder qualquer coisa. Parece um pouco estranho, mas se acostuma. Dói, mas se acostuma. Longas jornadas de nada e de repente o mundo explode na cara. Contas, gente, livros; nada de filmes. Só uma triste comédia romântica dramática. E lá se vai. Mais um dia. Jantas, vinhos. Conversas jogadas ao ar para que ninguém saiba de onde vêem. Um mistério nada misterioso. Uma certeza que vem cada vez mais clara. Tudo é nada, uma sucessão de nadas. Teclados, guitarra, percussão. Pra que mais. Pra que pensar. Sem domínio de ações concretas. Sonho de algo que pode ter existido em algum tempo passado. Sonho de um futuro que sempre está avante. Avante! Longas esperas. Porque sempre terá algum futuro. Qualquer que seja. Na nostra Latino America. Longe. Na nostra Ásia, nostra África. Longe. Uma Europa que afunda a cada passo nos nativos. Ainda falaremos sobre isso em salas de aula da Austrália. Um pequeno passo para nossa Jamaica. Assim vamos crescendo rumo ao infinito. Da morte. Uma noite sem sono. Sim, eu espero. Não tem problema. Tornaremos. E os vencedores estarão todos debaixo da terra. Um mundo de perdedores. Chegou a hora. Vamos? Sem medo. Eu já disse que ele vem. O futuro. Vamos?

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Janta VEGAN

Lá vamos nós para mais uma daquelas festas. Já na entrada da faculdade de Ciências Políticas aquela mistura de Hippie-Punk-Hajneesh que costumamos ver como o melhor que nossa humanidade produziu até hoje. Dessa vez tem som ao vivo, segundo o que indicam os cartazes uma mistura de herdcore-surf-punk-death-rock-alguma coisa. O pessoal caprichou no visual, o que fica facilitado pelo frio de -3 graus. Assim não faltaram coturnos, jaquetas de couro, tachinhas, correntes, piercings, cabelos rastafári, camisas de banda, patches...

Na entrada da “sala de concertos” um belo cheiro de comida quase me faz vomitar por ter a pança já cheia de massa com molho de guisado de porco e bacon. Uma delícia. Antes, não agora. Sem tempo para qualquer reação, como ir até o bar, uma menina me alcança o menu do dia e um panfleto explicativo: antes de verbalizar toda a sua raiva incontida nos microfones a juventude enche a pança com uma janta VEGAN. Faz parte do protesto. Por isso transcrevo aqui o que dizia o panfleto:

“Vegan porque pregamos a rejeição de qualquer produto derivado da exploração animal como uma negação da mercantilização do ser vivo, opondo-nos assim à lógica de mercado que nos quer consumidores de opressão. Consideramos a discriminação como uma base através da qual o homem exerceu seu domínio sobre a mulher, o branco sobre o negro e o humano sobre os outros animais e a terra. Porque pensamos que a liberdade seja uma prerrogativa absoluta e não relativa somente à espécie humana.

Recuperamos aquilo que o capitalismo rejeita procurando evitar o sistema econômico a que ele nos obriga com suas regras de mercado.

Utilizamos também pratos de cerâmica na perspectiva de um menos desperdício, mesmo conscientes de que não seja essa a solução necessária para o aniquilamento do sistema dominante. Procuramos através da prática ‘lave o seu prato’ incentivar as pessoas a rejeitarem a delegação de funções e promover a autogestão... mesmo das pequenas coisas!”

Sinceramente, quase chorei de remorso. Pobre do porquinho que deu sua vida para o prazer banal que senti ao comer sua deliciosa carne a poucas horas. Vacas do mundo, existe uma esperança para vocês!

Mas aí algo me veio na mente. Alguns dos pratos eram bolo de soja, berinjela com trigo, pasta de milho com não sei o quê e salada, muita salada. Visto que estamos na Itália, imagino que a soja seja uma grande doação dos bravos agricultores brasileiros que a cada dia expandem suas belas fazendas do centro-oeste para a floresta Amazônica, sempre com sementes e “fertilizantes” da melhor qualidade fornecidos pela Monsanto. Segundo o Wikipédia, os maiores produtores de trigo do mundo são os Estados Unidos, então devemos agradecer aos bravos norte-americanos e suas melhores indústrias de biotecnologia pela qualidade do trigo da nossa janta VEGAN. Qual a minha surpresa ao saber que quem produz mais milho no mundo é também os Estados Unidos, então, mais uma vez “grazie” aos nossos irmãos do norte por mais esse produto indispensável.

Tudo bem, esse raciocínio pode ter várias falhas, mas serviu para me convencer de que não preciso abandonar meu churrasquinho. Já mais tranqüilo comprei uma lata de cerveja de uma multinacional qualquer, acendi um cigarro da Philip Morris que pedi para um dos companheiros de festa, e pude me divertir valendo com as bandas da noite.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

O individualista

A linguagem é a fantasia mais perfeita e traiçoeira da humanidade. Qual será o segredo que se esconde por traz do paradoxo que nos comunicamos e ao mesmo tempo não entendemos nada do que se diz? Quanto de exercício mental será necessário para estabelecer as bases de um uso racional da linguagem humana?

Se Frege, Russell, Wittgenstein e todos seus seguidores não chegam jamais a uma resposta coerente, quem sou eu para me aproximar de uma solução. No máximo posso pôr mais dúvidas e, com muito esforço, propor algumas questões concretas. Ainda, se a filosofia lógica analítica não chega a um consenso, o que dizer da metafísica e sua eterna tentativa de definir o sistema de conhecimento.... enfim, vivemos num mundo de suposições e parece que esse é o máximo que podemos fazer. Porém, também parece que algumas coisas podem ser pensadas fazendo uso de nossa racionalidade limitada.

“Eu gostaria que as pessoas pensassem mais em si mesmas. Não sou exigente a ponto de querer que todos sejam altruístas, que pensem no bem comum, mas que sejam individualistas e consigam ver o mal que algumas políticas fazem para eles próprios na hora de votar”.

Falávamos sobre política; direita, esquerda, centro e o nulo absoluto. Quando o discurso chegou no ponto acima citado, me dei conta de como “individualismo” pode ser interpretado de tantas formas. “Que se foda o mundo, eu só penso em mim”. E agora: qual a conseqüência disso? O que quer dizer pensar só em si? A que nível de ações concretas porta esse pensamento?

Posso partir do pressuposto que a finalidade seja a felicidade, ou atingir um objetivo qualquer que no fim portaria à felicidade individual. Nessa caso, quando alguém diz pensar só em si pode significar que busca um caminho mais rápido possível para essa finalidade estabelecida, que lhe portaria a felicidade ou realização na vida. No mundo de hoje, isso pode ser entendido como o caminho mais fácil para acumular dinheiro e bens, ou seja, riqueza material. Se diz que o individualista é aquele que não tem escrúpulos para alcançar esse objetivo. Não se preocupa que para isso outras pessoas tenham que ser sacrificadas e lançadas fora do jogo, afinal somente alguns podem ser os vencedores quando a vida é um jogo, e para o individualista o vencedor tem que ser ele mesmo.

Suponhamos que o nosso individualista tenha sucesso na sua carreira, que consiga acumular e aos poucos adquirir os confortos com os quais sempre sonhou: uma grande casa, um grande carro, uma mulher magra, uma gorda conta no banco. Nesse momento ele passou para um outro nível. O problema é que aqui ele vai ver que existem outras pessoas que estão na sua frente no jogo e não se dará por satisfeito até que tenha mais que eles. Começa tudo de novo e ele conquista uma casa maior, um carro maior, uma mulher mais magra (e mais jovem), uma conta brutalmente obesa no banco. E assim ele muda mais uma vez de nível e aqui ele vai ver que....

Bem, é um extremo, mas serve para a teoria em geral. A um certo ponto o nosso individualista começa a se preocupar em não perder o que conquistou com tanto esforço. Ele é rico e por isso vota na direita. Por costume e pelas promessas de menos impostos, menos direitos para os trabalhadores, salários mais baixos, enfim, tudo para sua economia pessoal e individual. Como ele é rico, joga na bolsa de valores, quer um mercado aberto e sem as amarras do governo, afinal, o capitalismo é a sua própria ferramenta de regulação.

Nosso amigo a esse ponto é um homem refém do medo. Medo de que se desvalorizem suas ações; medo de que lhe roubem o carro ou que invadam sua casa; medo de que seu banco vá a falência; medo de andar na rua porque podem saber que ele é rico e o seqüestrem; medo de ter amigos, porque eles podem apenas ser outros individualistas do jogo que querem apenas se aproveitar da sua fortuna. Assim nosso individualista foi tão individual que o que era para ser sua felicidade virou sua prisão.

Aqui voltamos ao que dizia meu interlocutor e em como o individualismo mal interpretado pode ser voltar contra o próprio individualista. Digamos que o que ele queria era um individualista consciente, ou racional. Um individualista que pense na sua própria felicidade e que saiba o quanto é importante para isso que o mundo funcione dentro de um certo padrão que seja, mais ou menos, bom para todos.

“O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”, disse Raul Seixas, o que também é um extremo, mas ajuda a entender a outra forma de individualismo proposta. Se o fim é alguma forma de felicidade, como posso ser feliz sem que no meio exista a felicidade? Como posso ser feliz em meio ao sofrimento alheio? Nosso individualista continua a pensar só em si, que se foda o que os outros fazem da sua vida, como vivem. Nosso individualista racional continua querendo acumular bens e todo o resto, mas sabe que para isso a sociedade em geral deve estar estabilizada; sabe que quanto mais ganham os empregados, mais faturam os patrões; sabe que se qualquer um pode buscar sua própria felicidade individual ninguém vai querer roubar seu carro ou sua casa. No fim nosso individualista se libertou da inveja, porque ele é um verdadeiro individualista e poderá se dar conta da felicidade que um dia alcançou ou pode alcançar sem se preocupar com os outros.

Mais um retorno. A linguagem agora revela seu enigma. A mesma palavra pode levar a interpretações tão opostas que mudam totalmente a vida de uma pessoa e, porque não, de toda uma sociedade. Uma palavra, e apenas alguns minutos de raciocínio sobre ela. O mundo não mudou, mas é diferente. A língua não mudou, mas é diferente. O homem não mudou, mas é diferente. Quem explica isso?

domingo, dezembro 12, 2010

Festa contra o governo

O sistema de protesto é a ocupação. Não que resolva alguma coisa; não muda nada; mas são dias divertidos para os filhos de uma Itália que um dia foi rica. Em Bologna o prédio da Faculdade de Filosofia está ocupado. “38 Bloccato” diz uma faixa logo na entrada. Não que isso mude muito a rotina; não muda nada; as lições sobre Platão, Wittgenstein e toda a turma continuam enquanto alguns verdadeiros anarquistas acampam em uma das salas de aula.

Como não poderia deixar de ser, as manifestações desembocam em festas estrondosas para que a juventude deixe seus euros pela causa e por uma noite de embriaguês contra o governo. Sábado o motivo era mais que justo para convidar toda a comunidade acadêmica ao 38 da via Zamboni: recolher fundos para que os anarquistas de verdade viagem à Roma na quarta-feira, onde encontrarão outros anarquistas de verdade e com certeza vão derrubar o premier Berlusconi.

Eu, claro, não poderia não participar de um momento desses. Cheiro de revolução na Faculdade de Filosofia da universidade mais antiga do ocidente. Dá pra ver nos olhos dos jovens que eles se sentem parte da própria história da humanidade, ainda mais com um copo de vinho na mão e uma boa quantidade de haxixe na cabeça. É um pouco difícil entrar e passar pelo corredor principal. Os estudantes atenderam ao chamado dos revolucionários e estão trocando todas suas notas por cervejas de 1,50 e vinhos de 2 euros. Tudo isso embalado pelo The Clash, “London Calling”. Depois Ramones, depois Dead Kennedys, G.B.H, Toy Dolls, e eu já vejo as bombas caindo sobre a sede do governo, os engravatados saindo em chamas pela rua e morrendo espancados pelos paus que seguram as bandeiras vermelhas e negras..... UFA!

Ainda bem que o DJ percebeu o clima que se criava e mandou um Reggae. Assim podemos dar mais uma circulada pelo ambiente. No segundo andar da faculdade uma banca vende pedaços de bolo e sanduíches, cervejas e vinhos. Aqui o pessoal está um pouco mais calmo. Parece ser esse o centro intelectual do movimento. Pequenos grupos discutem entre goles de Birra Moretti e vinho Sangiovese. Na sala 3, uma daquelas salas de filme, tipo auditório, acontecem os concertos, que segundo o programa vão de Jazz a Folk. Entramos na sala e um clima grave toma parte da platéia. Sobre o palco um trovador solitário faz o papel de Bob Dylan, com cabelos embaraçados e canções tristes cantadas em um inglês que ninguém consegue entender o significado. Mas são belas canções e a platéia presta atenção e o clima de revolução volta a tomar conta, dessa vez com flores, cartazes, protestos silenciosos e greves de fome que durarão até que a classe dominante perceba o quanto é irracional seu sistema e desista de oprimir o povo. Já vejo uma multidão em frente à sede de governo, Berlusconi abre a porta, diz que não será mais o presidente, que se arrepende de todos seus erros, a multidão abre espaço e depois toma o poder para uma nova era de paz e amor.....UFA!

Até que o amigo alemão me cutuca: “mas que grande merda isso aqui! Essa música está um saco!”. Sim, é verdade. E na verdade o pessoal só finge prestar atenção e finge ser revolucionário e finge ser intelectual. “Mas eles são intelectuais, estão curtindo a música”, disse eu numa última tentativa de acreditar. “Tudo bem, mas até os intelectuais precisam de um pouco de festa”. OK, é tudo mentira mesmo, vamos para o vinho e a dança nos corredores da faculdade aproveitar enquanto o governo não cai e ainda temos motivos para festas e protestos.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Canned Heat - "Boogie With Canned Heat"


Boogie. Pesado. Alguém, por acaso, sabe o peso do blues? Para alguns é tão suave que “fly away” sem incomodar ninguém. Para outros é tão pesado que transforma um coração de pedra em pura gelatina. Para mim, ele seguramente tem os mais de 100 quilos de Bob “The Bear” Hite, vocalista e idealizador do Canned Heat, uma das grandes bandas de blues americanas do fim dos anos `60 e início dos `70.

Que me perdoe o professor que disse que em matéria de Blues só vale o que é “negro e dos Estados Unidos”. Se bem que metade da lição vale para esses rapazes da Califórnia, porém são todos brancos. Para quem ainda não sabe quem são, essa é a famosa banda do gordinho do Woodstock, e o gordinho é justamente “The Bear”.

A especialidade da turma é o boogie woogie. Não à toa que o disco principal, e que resume melhor a ópera da banda é “Boogie with Canned Heat”, de 1968, que justamente lhes valeu o convite para a apresentação no antológico festival citado acima. Com essa obra, eles se consolidaram como uma das principais referências do dito “novo blues”, o ressurgimento que teve o estilo no final dos anos `60 através dos rapazes brancos que buscavam algum tipo de raiz nos velhos blues negros do Delta e de Chicago, não só dos EUA, como também da Inglaterra, vide a tropa formada por Animals, Eric Clapton, Rolling Stones, John Mayall. Na real, em termos históricos, podemos dizer que o Canned Heat faz parte da reação americana aos britânicos que se meteram a fazer Blues e apavoraram com o Rock`n`Roll na metade dos `60.

O disco em questão é o segundo da banda e contém algumas pérolas como “An Owl Song”, onde Bear canta com uma vozinha suave que ao imaginar sua figura dá pra se mijar de rir, “On the Road Again”, talvez uma das músicas que ficaram famosas mundialmente, e “Whiskey Headed Woman, no. 2”, que abre o disco em grande estilo e dá a letra do que vem na sequência. Resumindo, esse é um daqueles discos pra botar na vitrola e esquecer do tempo, deixar a mente viajar por um ritmo constante que liga uma música noutra como uma verdadeira obra completa. Enfim, um disco de ouvir do início ao fim.

De `67 até `71 o Canned Heat viveu seu auge como banda. Logo após gravar outro disco clássico “Hooker`n Heat”, disco duplo com ninguém menos que John Lee Hooker, morre o guitarrista e co-fundador da banda Alan Wilson. A banda mantém seu estilo apegado no Roots Blues e segue aos trancos e barrancos nos anos `70, chegando a se separar por breves períodos. Nessa época eles sobreviveram, como muitas bandas, pelo suporte dos motociclistas, uma típica banda Hell Angel. O golpe mais duro, porém, viria em 1981, quando The Bear morre por causa de uma overdose de heroína.

O Canned Heat segue até hoje fazendo shows e gravando discos, mas nunca mais alcançou o auge de quando eram "os gordinhos do Woodstock". Essa é a boa dica para o fim de semana, junto com uma garrafa de vinho, um bom baseado e, claro, a nêga véia para um chamego.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

O palhaço

A vida é simples, ou pelo menos deveria ser. Simples como a alegria por um dia de sol depois de duas semanas cinzas e vividas e meio a blusões de lã, meias duplas, ceroulas e todas as jaquetas possíveis. Só uma “nesga” de sol entre os prédios, e as pessoas se acumulam em escadarias centenárias no meio da tarde para simplesmente fazer nada. Um meio sorriso de satisfação brota ao sentir os ossos um pouco mais quentes. Partes do corpo que pareciam mortas ressurgem, células voltam ao seu metabolismo e a vida aos poucos fica mais colorida. Parecemos loucos encostados na parede de um castelo tentando acompanhar o movimento do céu. As imagens da cidade começam a ganhar forma, os olhos vagam pela praça e a falta de sentido cotidiana.

Um outro grupo surge à vista. Parece mentira, mas não é. A terra de Fellini proporciona dessas coisas mesmo longe dos cinemas. Um palhaço sobe numa banqueta e prepara seu discurso. Na platéia jovens estudantes, desocupados, alguém que aproveita seu caminho para ouvir alguma boa piada, aposentados. O sorriso eterno de uma face maquiada não esconde as marcas do tempo e de uma vida sem graça.

“Nós estamos presos a esse mundo. Quem de vocês sabe alguma coisa sobre liberdade? Eu fui caçado de praças como essa. Eu vi o mundo mudar e não se transformar em coisa alguma. Eu sou a dor e o alívio da dor. Eu queria vender sorrisos e me denunciaram como subversivo. Eu gostaria de viajar, mas me disseram que não tinha dinheiro. Eu fui com meus próprios pés e quase morri. Ninguém quis saber de mim, e aqui estou. Vocês discutem o que existe de errado e eu lhes digo a verdade. Tudo está errado. Nada está errado. Eu sei, é difícil admitir. Nossa alma está fora da realidade, da razão. Não precisamos mudar nada que esteja fora dos nossos olhos. As coisas continuarão a existir. As pessoas continuarão a passar. Eu vi e lhes digo. Eu não quero ser normal. O normal fez seu irmão sofrer. Eu não quero ser normal. O normal virou a face a seu irmão. Eu me pinto um sorriso mal feito todas as manhãs para mostrar e que escondo. Eu nunca produzi nada. Eu nunca fiz nada. Eu tenho a verdade e quem quiser que corra por ela. Vocês nunca vão alcançá-la. Ela só pode ser brevemente vislumbrada por quem tem olhos especiais. Ela não está aqui. Não está em nenhum lugar. A verdade é a verdade que se esconde sempre atrás de nós mesmos. Eu ganhei meus olhos com a vida. Quem se julga sábio o suficiente que procure o mesmo. Fim.”

E então acabou o sol. A platéia se desfez em direção às casas bem aquecidas, aos ônibus, aos bancos da universidade. O palhaço ainda ficou um pouco ali. Ninguém mais quis saber das suas verdades. Ele sorriu por detrás da máscara, abriu seu guarda-chuva e começou a dançar rumo aos seu destino, distribuindo balões para as crianças.

Por um momento não me interessei mais por livros, filmes, ou qualquer outra coisa que tinha em mente. Queria ser um palhaço. Queria contar histórias e conhecer o truque de brincar com a verdade. Senti qualquer coisa no olho. Talvez uma fumaça do cigarro, talvez um raio perdido de sol... ou talvez apenas alguma coisa que nunca tenha sentido antes de sair para a rua e ter parado para ouvir um palhaço.

Casa e vinho

A pobreza transforma as unidades de medida de um ser humano. Eu, por exemplo, depois de ter me tornado um pobre, vejo o mundo como litros de vinho e aluguéis que poderia pagar. Porque essas são as necessidades básicas de um pobre: casa e vinho. É quase uma versão moderna e alcoólica de pão e circo, talvez sob forte influência de Roma, que está a menos de quatro horas daqui.

Um amigo outro dia comprou uma bicicleta. 40 pila. Por incrível que pareça, uma bicicleta representa hoje 26,666666.... litros de vinho. O que por sua vez representa 13 noites de embriaguês pelas ruas de Bologna. Uma boa quantidade de “festas” para um mês. Ou seja, uma bicicleta se afigura para a mente de um pobre como um desperdício plenamente calculável. Tudo bem, uma bicicleta dura o tempo que eu quiser. Mas quem me restituiria as noites que poderia passar bêbado em meio à massa de gente rica que caminha em busca de diversões mais caras? Afinal, eu sou exigente, e preciso da sensação de pertencimento a uma estrutura social que nos ensinou a importância de pertencer a uma estrutura. Nem que seja a estrutura dos bêbados que vagam pelas ruas à noite, sem rumo, sem esperanças de fazer qualquer coisa que não seja estar bêbado e olhar outros bêbados que entram e saem dos bares quentes onde não posso comprar uma bebida. Me consola o vinho em uma garrafa plástica que custa 1,50 no supermercado.

Outro dia olhei uma vitrine de uma loja que nem era tão importante assim, quase de periferia. Ali, como um troféu inalcançável brilhava uma jaqueta de alguma matéria derivada do petróleo, iluminada por spots e néons, inflada como uma roupa de astronauta da NASA. Tinha preço, que era exibido para mostrar o quanto valia aquele troféu: 1.250 pila. No meu mundo de pobre isso representa 2,5 aluguéis, ou seja, a garantia de ter um teto sobre a cabeça por dois meses e meio. Só me resta rir, porque certamente existe quem paga para se vestir como um astronauta em plena terra e brilhar pelas ruas com o produto da merda dos dinossauros.

Se não bastasse a própria irracionalidade dos exemplos em si, existe ainda uma outra, muito mais profunda, na comparação entre eles. Sem dúvida uma bicicleta é muito mais útil do que uma jaqueta de astronauta, e mesmo assim, custa só 26,666666... litros de vinho comparados com os dois meses e meio de aluguel. Isso no coração do mundo ocidental, terra dos iluministas, onde se diz que se desenvolveu a razão do homem.

Sim, louco sou eu, que comparo tudo com vinho e casa. Aliás, estou de saída. Vou tomar um vinho que custa 2,50 o copo, só para me sentir um pouco melhor e não pensar que estou louco. Vou me sentar no restaurante, dar boas risadas, comer uma massa e voltar pra casa com a sensação do dever cumprido. Mas peço aos meus amigos só um favor: nunca me deixem andar de bicicleta por aí com uma jaqueta de astronauta.