sábado, dezembro 17, 2011

O papa é pop



Depois da morte e ressurreiçao de Jesus Cristo (esse é o novo nome do computador) voltamos aos Devaneios para escrever sobre uma verdadeira obra prima da musica brasileira: o disco O Papa é Pop, dos Engenheiros do Hawaii. Para começar, estamos falando aqui do apice de criatividade de um grupo, o que geralmente coincide com a produçao de um album conceitual, uma obra de arte realizada, construida, densa de significados, que no caso consegue harmonizar musica, texto e imagem em uma unica coisa. Mas a obra nao é fechada sobre si mesma. Muito pelo contrario, ela se abre para o mundo, colhe seu significado, representa, e devolve ao mundo uma imagem carregada de uma nova visao, um novo discurso, um novo jogo de significados, que se concretizam na abertura da possibilidade de reinterpretaçao e mudança do antigo estado de coisas. O interessante é que dentro da propria obra esse jogo de saberes e significados esta representado.

Tudo começa com O exército de um homem so e a figura do pensador solitario, aquele escritor-personagem-heroi que se impoe o auto exilio a fim de olhar o mundo de fora, de perceber aquilo que esta além da realidade, e assim é capaz de reescrever a propria historia. Mas essa nova historia nao é definida, nao é facil, aparece como uma luz, um espasmo que esta inscrito nos detalhes imperceptiveis, cuja escritura também é suja, é escrita “em linhas tortas”, “ em paredes de banheiro, nas folhas que o outono leva ao chao”. O exercicio de olhar o mundo de fora lhe da uma percepçao do tempo, um saudosismo do passado, de uma tradiçao que resiste nessa lembrança e se projeta em um futuro que, em todo caso, nao se sabe até que ponto pode ser realizado, um futuro utopia. Um jogo estranho onde notas de um sintetizador Midi remetem ao passado, o novo e o antigo que se unem no presente. Por outro lado, esse é também o periodo de criaçao da subjetividade, do ser que se constroi em relaçao com aquilo que esta fora, em uma depuraçao daquilo que considera falso, livre dos preconceitos, o homem que é criado dentro de uma estrutura social, mas que justamente por se dar conta dessa estrutura busca a saida, a possibilidade, porque a vida em si nao é feita com as regras artificiais criadas pelo homem: “nao interessa o que o bom senso diz, nao interessa o que diz o rei, se no jogo nao ha juiz, nao ha jogada fora da lei...”.

Este homem-exército no seu processo de emancipaçao criativa deve também recordar sua propria historia, a origem da sua viagem individual que tenta colocar em relaçao com seu espaço-tempo. Por isso Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones representa o primeiro choque, a separaçao da infancia, o jovem que ao improviso ve o mundo se abrir em frente aos seus olhos e a terra sumir sob seus pés. A consciencia da sociedade injusta, da completa falta de liberdade individual, representada aqui pela carta de alistamento no exército, que significa igualmente o contrato de trabalho, as contas a pagar, as leis a obedecer. E pior, a necessidade de “lutar” contra seus proprios irmaos em um sistema onde o individualismo foi confundido com egoismo. Em tudo isso a possibilidade de ver sua alma morta em uma trincheira qualquer, o sistema que molda seu soldado até que ele se torne mais uma maquina a serviço do sistema e se esqueça de quem realmente é; o exército-sistema que aniquila e contra o qual deve lutar o exército-individuo. A patria que é qualquer patria e no entanto somos todos iguais todos seres humanos.

Depois de se dar conta das pressoes do sistema a unica reaçao é quase paranoica, depressiva, aquele homem que percebe a injustiça de um sistema mas ainda nao tem as armas para lutar contra. O exército de um homem so II é a percepçao e ao mesmo tempo sentimento de culpa por saber o que acontece e nao ter ainda uma resposta para sair do quadro geral, no caso a percepçao de que “tanto faz ser culpado ou ser capaz”. Paranoia é conviver com o estado de coisas sabendo do seu mecanismos e nao podendo sair de dentro dessa prisao; é o belo jogo de palvras entre o comandante e o soldado que nao se entendem e seguem ao infinito um jogo de ordem, revolta e sujeiçao.

O primeiro sinal da liberdade o homem encontra na perda do medo; medo da vida, medo do mundo, medo do futuro. Mas o desconhecido é de qualquer forma ja conhecido, ja vivido, esta escondido em algum lugar mas insiste em bater “como um relogio antigo”. A historia da revolta, do andar contra, que revela a possibilidade de uma realidade ainda nao vivida mas latente no desejo de liberdade, no andar contra a corrente, liberdade do sentimento de Nunca mais poder, apropriaçao do poder criativo.

Até que entra em jogo o mais poderoso dos sentimentos humanos, o amor. Agora o confronto nao é mais com uma superestrutura que oprime, é a opressao no peito, o coraçao prestes a explodir, a sensaçao de uma alma quebrada, estilhaçada por esse poder inexplicavel. É mais uma etapa do aprendizado, o homem racional que se ve dominado por uma força incontrolavel, que no fim aniquila. Uma dor que nao deixa nada além do vazio, talvez a liçao de que a sinceridade é uma das ferramentas indispensaveis no duro jogo da vida. Pra ser sincero, nao so com o outro, mas consigo mesmo, saber reconhecer as fraquezas, os desajustes, saber reconhecer no outro sua individualidade e saber que cada um existe e vive em respeito ao outro.

Pensar o outro, o enigma do outro, daquelas milhoes de almas que circulam todos os dias pelas ruas, que cruzam seus destinos, que se encontram e desencontram. A massa, que parece sempre igual e que esconde seus segredos atras de uma aparencia comum, um cosmo formado de microcosmos inacessiveis, revelados pouco apouco, jamais em sua totalidade, uma trama de pontos em comum e milhares de linhas dissonantes. Olhos iguais aos seus, mas poderiam ser quaisquer outros, olhos tao parecidos e tao diferentes. E depois os olhos que estao a olhar tudo isso, o que esta atras desses olhos, por que essa estranheza em relaçao ao outro? Como olhar aquele velho mar de estrelas de cima de uma montanha, da janela de um apartamento, e saber que ali tambàem tem apenas mais uma daquelas luzes; e no fim essa pequena janela é tudo, tudo o que se pode saber.

E o que é que se pode saber realmente? Com certeza nao aqui que estampa diariamente as capas de jornais e revistas. Um mundo de espetaculo onde O papa é pop e o “pop nao poupa ninguém”. O que vale mais: a verdadeira virtude ou aparecer em milhoes de eletrodomesticos? Porque no fim nao resta nada, e nao resta nada porque nao se cria nada. Talvez a nova reinterpretaçao de uma antiga teoria, a nova mensagem escrita ha mais de 2 mil anos, na velocidade de um disparo, tudo condenado ao esquecimento instantaneo. A imagem some quando se esquece a mensagem, quando nao existe uma verdadeira mensagem.

Tudo entao se resumiu a nada, a consumo, a pequenas coisas que nos fizeram acreditar fundamentais para a vida. A religiao é um produto tanto quanto um chiclete. O pequeno problema é que todos querem e poucos podem e nesse mundo, com essas regras, é facil ver que A violencia travestida faz seu trottoir. Ninguém esta livre, seja aquele que ve o jogo de pé na arquibancada, seja o rico do camarote, todos estao sujeitos ao mesmo valor. E aquele sentimento de revolta do qual ja falamos se perde, porque é um sentimento vazio como uma “vontade de gritar sem nada a dizer”. Todos presos, dentro de uma favela, numa penitenciaria, dentro de um carro blindado, num condominio de luxo; prisoes modernas que nos vendem como liberdade, liberdade de comprar, mas so se voce fizer por merecer, so se voce for um escravo padrao; a verdadeira “igualdade dos desiguais”. Paranoia, suicidio, nao sao coisas de se espantar. Como se libertar desse mundo?

Bem, para a liberdade é necessario viver. Viver a fundo a cidade no seu melhor e no seu pior, como quando a gente se da conta de que Anoiteceu em Porto Alegre. É ali que a normalidade sai de jogo, que todo o esquema desmorona, a noite sem fim dessa cidade que nao dorme, que despe toda sua falsa impressao quando o sol mergulha no Rio Guaiba, quando o vermelho penetra nos nossos olhos e ilumina a noite que esta por vir. Na comunhao com a verdadeira loucura se encontra qualquer coisa parecida como uma salvaçao, seja um pastor de igreja evangélica no radio do taxi que te leva para a tentaçao, seja no copo de uisque barato das primeiras horas da manha. So sera salvo quem levar consigo os estragos da noite, da bela e terrivel noite de Porto Alegre. Porque amanhece, se amanhece aqui, amanhece em qualquer lugar, e dentro de nos o mesmo de sempre é ja outra coisa porque conseguimos sobreviver mais uma vez à loucura no seu estado extremo.

Um novo ponto de vista; varios novos pontos de vista: essa é a conquista. A sabedoria de que nada é definitivo, o que nos vemos nao passa de uma Ilusao de otica, uma imagem que pode ser quebrada com um simples jogo de corpo, um simples golpe de vista. Niilismo? Talvez... Mas talvez seja melhor pensar em uma nova historia, aquela nova historia, o novo giro da historia, escrita à mao, sim, mas pela mao de um homem livre.


P.s.: Jesus nao tem os acentos que usamos na lingua portuguesa, por isso nao pensem que é culpa minha o assassinato da nossa bela lingua...

6 comentários:

Nini disse...

Inspiradíssimo!

Então um Feliz Natal!!!

Dani disse...

É, o velho Humberto foi o melhor letrista do Br Rock. Não tem pra ninguém!

Anônimo disse...

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