segunda-feira, setembro 11, 2006

Telefone

Este foi, provavelmente, o primeiro conto que escrevi. Só o coloco aqui porque tenho um carinho especial por ele. Esta é a vida a qual nos acostumamos: noites de deriva pelos butecos.
Uma e meia da manhã agora. Andava, sentindo a angústia das quatro paredes de sua jaula. Nada mais que a televisão ou o computador pudessem fazer. Seu cérebro já estava derretido, como o plástico da carteira de cigarros na latinha ardente de álcool. Nem Jimi Hendrix, nem Che Guevara, nem John Lennon, nenhum dos pendurados olhava em seu rosto, ninguém olhava. O telefone quieto, mudo. Os vizinhos não faziam sexo, não usavam drogas. Os discos, arranhados, tão cansados quanto os ouvidos. E frio. E sem cerveja. Acendeu um cigarro antes de ir. Sempre prolongando a dor diminuindo a vida. Mas quem liga?, seremos velhos mesmo.
No corredor do prédio, hospital. Portas de acesso a outras dimensões, mundos paralelos, as portas da percepção da vida real. Triste. O elevador, elevador de merda, trouxe um casal de baratas mortas e um preservativo usado. Pelo menos morreram felizes; e riu sozinho. Oito andares, como demora, porque não cai esta merda, elevador de merda. Luz amarela, suja, espelho rachado, cara rachada, suja da barba, do óleo, da fumaça.
O porteiro da noite olha assustado. Não entende por que, já devia ter se acostumado. Ou existe a esperança que ele não apareça? Do porteiro só lhe incomodava o mate, representação da cartilha dos porteiros:

- Segunda-feira: chimarrão, jornal de domingo, soneca das 2h às 4h.
- Terça-feira: chimarrão, revista Veja, soneca das 2h às 4h.
- Quarta-feira: café, rádio, soneca das 3h às 4h.
- Quinta-feira: chimarrão e café, jornal, revista, rádio, sem soneca.
- Sexta-feira: nada, movimento.

Sempre se complica para abrir o portão do prédio, e o porteiro, tomado de amnésia, deve ser o chimarrão, sempre espera para lhe abrir. A rua, o ar gelado lhe parece mais puro, triste e puro. Acende outro cigarro. Agora só tem mais três, precisa se controlar. Não sente mais os dedos, não tem luvas. Não gosta de luvas, gosta de não sentir os dedos.
Anda, olha e anda. Tudo deserto. Nem cachorros nem táxis, só plantas de vivo acenam pelo vento gelado do Guaíba. Anda, lixo e fezes. Humanas ou caninas não importa, dá tudo na mesma, somos todos iguais, eles menos estúpidos. Mendigo dormindo na calçada, pena por quê? Ele que vá ser mendigo num lugar mais quente, pior que isso não fica.
Objetivo: bar. Bar, restaurante, lancheria, não sabia do que chamar a espelunca engordurada da esquina. Do balcão pegajoso pede sua cerveja. Tudo é pegajoso ali, as prostitutas, o cat-chup, o guardanapo, tudo. Outro casal de baratas cruza a parede à sua frente; será que estas usam camisinha? O gordo vira o hamburger na chapa com os olhos fixos na tela. Todos têm os olhos fixos na tela, bendita tela. No fundo do balcão um sorriso de cinco dentes devora seu X Salada. Esta é a sua tela. Que bizarrice, ela nem percebe, mais uma cerveja. Sua tela acaba o lanche e vai embora, perdeu a graça, ele também vai.
Para onde agora, Bom fim? Segunda não abre o João. Cidade Baixa. A praça também deserta, ninguém se anima a fumar maconha nesse frio, ninguém se anima, a nada. Na zona três carros, sempre três carros. Cerveja de cinco, mulheres de setenta, tudo tem preço. Anda mais, mais uma esquina. Posto de gasolina, aberto, tudo tem preço. Perimetral vazia, igreja fechada, sempre fechada. Atrás do muro só o out-door da Coca-Cola, sempre feliz, sempre aceso, sempre Coca-Cola.
Chega então à Lima e Silva, melancólica de segunda, ressacada do fim de semana. Aqui sim sempre os mesmos, hippies do incenso, vagabundos, alcoólatras, vagabundos alcoólatras, mulheres sedentas, universitários, toda a escória. Nada melhor que rir de seus iguais para esquecer de si mesmo. O chato do violão não desiste nunca. Mesmo assim ele entra, mais um bar, hesita, cerveja, uísque....... cerveja. Senta. Acende um cigarro, agora só restam dois. As conversas das mesas já teve todas. As solidões do balcão já teve todas. Os porres, as risadas, a politicagem, são sempre os mesmos, mudam as vozes.
Maldito seja quem botou o primeiro vilão na mão desse idiota; muda de bar. Mesas vazias, pequenos grupos. Um uísque agora, Natu. Fôda-se; mais um cigarro também, agora só falta um. Um, dois goles, mais um uísque, mais um Natu.
Resolve caminhar um pouco, vagando na sensação de mais uma noite perdida, um pedaço da vida que se escorre. Brinca com o último cigarro da carteira, amanhã é outro dia, sem dinheiro, pior sem cigarros.
Sem querer está em casa. Três e meia agora, hora da soneca. Maldito elevador, elevador de merda. Abre a porta e deita, de roupa, de tênis. Olha as infiltrações que descascam o teto.
Se ela ligasse nada disso teria acontecido.

Um comentário:

Anônimo disse...

Derrepente nunca mais vai acontecer...porque ela não vai precisar ligar, ela vai estar ali do lado dele...