sexta-feira, janeiro 28, 2011

Platão é Rock

Pelo pouco que conheço da cultura ocidental, acredito que Platão tenha sido o primeiro cara a escrever sobre Rock`n`Roll. Com certeza existem outros gregos antes dele que escreveram sobre música em geral, mas dessas obras só existem fragmentos e provavelmente não são tão específicas como a República de Platão é sobre a importância do Rock`n`Roll para a juventude. No livro em questão, o pensador imagina uma espécie de sociedade perfeita pra tentar convencer seus amigos que a justiça e o bem são o melhor caminho para a felicidade. Para que a cidade funcione, a educação tem um papel fundamental. Assim, os jovens devem ser criados com base nas mais altas virtudes do ser humano. Lá pelas tantas ele começa a falar sobre a importância da música nessa educação. E a música que ele diz ser a melhor para que os jovens cresçam virtuosos é, nada mais, nada menos, que o Rock`n`Roll. Vejamos:

“[398d] a melodia é composta de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo. (...) no que concerne às palavras se deve expressar na mesma forma e modalidade que fixamos antes. Tínhamos dito que nos discursos não precisamos de nenhum lamento e gemidos. (...) se as harmonias lamentosas (...) são inúteis até para a mulheres que devem ser honestas, imaginem para os homens. Nesse caso as harmonias lentas também não nos servem. Conservemos então apenas essas duas harmonias, uma violenta e outra voluntariosa, as quais poderão imitar melhor as vozes de pessoas destemidas, felizes, temperadas e corajosas. Nos cantos e na melodia não precisamos de muitos sons e melodias complicadas. (...) Não devemos andar a busca de ritmos variados e métricas de qualquer gênero, mas considerar quais são os ritmos de uma vida ordenada e corajosa. (...) Mas o importante são as letras (...) o ritmo e a harmonia, como se dizia antes, são regulados pela palavra. (...) A falta de decoro, de ritmo e de harmonia é aparentada com a baixeza da linguagem e do caráter, enquanto as qualidades opostas são irmãs e imitações do oposto, ou seja de um caráter sábio e honesto.”

E chega. Já deu pra perceber que ele fala de Rock. Em primeiro lugar, a importância da letra. Rock`n`Roll é letra, é passar uma mensagem para a rapaziada. Depois, nada de “lamentos e gemidos”, ou seja, nada de pagode e sertanejo. Ele quer uma harmonia violenta e voluntariosa, mas ou menos como um Motorhead, ou coisa parecida. Nada de sons complicados e difíceis.

E agora, Platão é ou não é um Rocker? E se Platão, que há quase 2,5 mil anos influencia a humanidade, disse que devemos curtir Rock`n`Roll, quem somos nós para contrariar?

quarta-feira, janeiro 26, 2011

O lance é a letra



Era o maior show da banda. Festival de aniversário do Sociedade da Lei MC, o Moto Rock IV. Só me lembro que tocávamos nós, Opala 69, a Vlad V, e mais umas três outras bandas. Pra ter uma idéia do evento, um pedaço da história do clube:

“Foi aí que ao tentarmos registrar o nome como Sociedade Alternativa fomos avisados que não poderíamos usar o nome e o escudo que tínhamos escolhido. Foi então que fizemos uma reunião para escolher o novo nome e escudo, assim escolhido o nome Sociedade da Lei e uma nova figura para o escudo que teve o desenvolvimento de uma caricatura pelo Sr. Antonio Borges. Então entrando em contato com a Sra. Kika Seixas e sua filha Viviam Costa Seixas as mesmas autorizaram o uso do novo nome e a nova caricatura, sendo autorizado e reconhecido no 5º Ofício do Notas, na rua Real Grandeza, nº 193 LJ-1/11, Botafogo na cidade do Rio de Janeiro/RJ no dia 27-10-2006.”

E agora, quem somos:

“A Sociedade da Lei Moto Clube é uma associação de motociclistas SEM FINS LUCRATIVOS que tem como base da sua organização a família e os seus integrantes (irmãos) que amam as motocicletas e as viagens em grupo respeitando e sendo respeitado por todos. Ser Sociedade da Lei é gostar de Raul Seixas, ser livre, ter um estilo de vida e ter compromisso com a sociedade, realizar e desenvolver trabalhos comunitários.”

Ou seja, era o maior show da banda. Primeiro problema: o baterista não podia tocar. Ia pra São Paulo visitar a família justo naquele fim de semana. Correrio, porque faltavam duas semanas pro show. Lá pela sexta o Vitão, baixista, arruma o cara, que pra mim vai ser pra sempre “o cara”. E o ensaio? Fudeu, porque o ensaio era na casa do batera. Recorremos ao Iva, que nos emprestou o palco do Curupira. O que me dá um grande prazer relembrar por ser o lugar mais Rocker do mundo, incrustado na beira de um morro de Guaramirim. Segunda de noite e o show já é na sexta. Ensaio com o cara. O famoso ensaio relâmpago. Todo o repertório pela metade no estilo “ta bom assim mesmo, na hora vai dar tudo certo”. Impossível, já que o cara nunca tinha ouvido Raul Seixas na vida e tocava numa banda de Death Metal. Vá lá que seja.

Sexta passa a van em casa. Dessa vez a galera se preparou: garrafa de uísque, umas 3 caixas de bira, uma vodka e mais alguma coisa. Maconha a dar com pau. Da última vez tínhamos chegado em São José com 4 horas de atraso porque paramos em todos os postos de gasolina da BR – 101 pra abastecer o isopor. Lá por Penha já está todo mundo bêbado. No fundo do ônibus o cara está de walkman, com as baquetas treinando no banco da frente. Vou até lá. Ele tira o walkman e diz:

- Cara, saquei qual é a do Raul.

- E?

- É a letra.

Com certeza ia dar tudo certo. E deu. Apesar de que não me lembro de nada, só que lá pelas tantas estourou o alto-falante do ampli da guitarra. Foi só desligar a distorção que ficou perfeito. O cara da próxima banda é que não gostou muito. Lembro que o Kaizé, meio que líder da gangue de motociclistas, me abraçava e agradecia. E lembro que abracei todo mundo que entrou na van quando a gente foi embora. E deu. É o suficiente. Afinal: o lance do Raul é a letra.

terça-feira, janeiro 25, 2011

Vamos fazer um filme

Certa volta, exercitando a filosofia de bar, depois de umas cinco ou seis ampolas do elixir da felicidade, um grande amigo diz: “tudo bem, muito bonitas essas idéias, mas nem todo mundo pode ser artista”. E agora? É verdade. Nem todo mundo pode ser artista. Até porque a genuína felicidade é amiga íntima da simplicidade. É se embriagar no sol ao lado da churrasqueira com a família depois de uma semana de trabalho. É assistir uma comédia no cinema. Passear de mãos dadas com o amor da vida sem rumo por estradas desconhecidas. Escutar uma boa música pelo prazer de simplesmente não fazer nada.

E agora? A arte da simplicidade. Como não somos todos artistas, se criamos dia após dia as ferramentas do prazer? Aquele que se recusa a ser apenas um espectador da vida é um artista. Está no caminho rumo a simplicidade da descoberta, da criação da felicidade da existência. Mas e a verdade? Nós fazemos a verdade, a realidade, a vida. O momento de criação do momento de prazer. Arte. Arte de viver. Arte de saber por que viver. Um mundo de artistas seria belo. Cada um concentrado na criação do seu próprio prazer. Assim estaríamos todos livres para viver. O individualismo perfeito. O individualismo de vivermos juntos na liberdade de criar nosso próprio mundo. Liberdade de buscar o prazer e a felicidade com a compreensão de todos que esse é o verdadeiro objetivo. Fim da prisão.

Poderemos desenvolver nosso próprio mundo, nossa própria linguagem de mundo e expressar nossos sentimentos secretos sem medo? A revolução de mudar os olhos. O medo e a agonia de mudar. Superar o medo no caminho do prazer e criar a vida. Quando estaremos prontos para isso?

Música. Arte. Alguém pode nos ajudar. O Blues cura, dizia John Lee Hooker. Podemos buscar a visão dos artistas, a vanguarda que pode nos ajudar a abrir os olhos, que nos acompanha na superação do medo. Música. Ouço Legião Urbana., “Vamos fazer um filme”. Poucas palavras plenas de significado. Vamos fazer um filme. Vamos ser os artistas criadores de nossa própria vida. Vamos. É fácil. É difícil. Mas não temos alternativa. Vamos?

“Achei um 3x4 teu e não quis acreditar
Que tinha sido há tanto tempo atrás
Um bom exemplo de bondade e respeito
Do que o verdadeiro amor é capaz
A minha escola não tem personagem
A minha escola tem gente de verdade
Alguém falou do fim-do-mundo,
O fim-do-mundo já passou
Vamos começar de novo:
Um por todos, todos por um

O sistema é mau, mas minha turma é legal
Viver é foda, morrer é difícil
Te ver é uma necessidade
Vamos fazer um filme


E hoje em dia, como é que se diz: "Eu te amo."?

Sem essa de que: "Estou sozinho."
Somos muito mais que isso
Somos pingüim, somos golfinho
Homem, sereia e beija-flor
Leão, leoa e leão-marinho
Eu preciso e quero ter carinho, liberdade e respeito
Chega de opressão:
Quero viver a minha vida em paz
Quero um milhão de amigos
Quero irmãos e irmãs
Deve de ser cisma minha
Mas a única maneira ainda
De imaginar a minha vida
É vê-la como um musical dos anos trinta
E no meio de uma depressão
Te ver e ter beleza e fantasia.

E hoje em dia, como é que se diz: "Eu te amo."?
E hoje em dia, vamos Fazer um filme
Eu te amo”

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Vida transitória



Fellini. Tive que aprender a gostar depois que um colega descarregou praticamente toda a filmografia do cineasta no computador. Não é que eu não gostasse antes, mas para um brasileiro normal, gostar de Fellini é meio que coisa de bundão. Na boa. Quem é que entra numa locadora e pega um filme do Fellini? Bundão metido a intelectual. Tudo bem, existem cinéfilos com uma genuína paixão por cinema, mas tem muito mais gente que faz finta. Porém, aqui na Itália ter assistido a todos os filmes do Fellini é coisa normal. Por isso tive que me atualizar.

Do que vi até agora, existem algumas verdadeiras obras primas e outros que são um pouco superestimados. “La dolce vita”, por exemplo, é um saco. Três horas em frente a uma tela assistindo a uma sucessão de festas dos italianos dos anos 50 não me diz muita coisa. Até imagino que na época pode ter sido uma sensação, mostrar que a burguesia tem a cabeça vazia e só pensa em gastar dinheiro. Mas o filme é um saco. O próprio Fellini consegue mostrar a mesma situação da burguesia em outro filme, “Giulieta degli spiriti”, de forma muito mais interessante.

Mas, olha só, já estou virando um bundão entendedor de filmes. O que eu queria dizer com tudo isso é outra coisa, que tem a ver com um dos filmes do Fellini, “La strada”. Belo filme. Triste uma barbaridade.

O assunto desse texto é o desapego a coisas materiais. Há alguns dias me dei conta de que as únicas coisas que tenho são minhas roupas, minha guitarra, meus livros e meus discos. Mas os livros e discos estão longe, então, de concreto, só tenho as roupas e a guitarra. O resto todo é transitório. O que me deixa muito feliz. Nos últimos anos tenho me mudado tanto de casa que qualquer lugar é bom, desde o Apartamento 2 até o sótão de Bologna, passando pela pousada da Josi em Jaraguá, a casa dos irmãos em Joinville, mais a casa dos repórteres, depois o primeiro apartamento de casado, de volta pra Porto Alegre.... enfim, uma vida transitória, que me ajudou muito a descobrir o real valor das coisas.

O filme em questão fala mais ou menos sobre isso, já que todos os personagens são artistas de rua. Mas o conceito fica realmente claro na fala de uma freira. “Nós mudamos de convento a cada dois anos porque assim conseguimos nos desapegar das coisas materiais, sabemos que tudo é transitório”. Com isso, chego à conclusão de que eu sou praticamente uma freira, mas uma freira que bebe, fuma, transa e ouve Rock`n`Roll. Ou seja, uma pessoa em contato direto com as divindades, mas que sabe aproveitar a vida.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

O real valor das coisas

Só mais uma consideração: quais são as melhores coisas da vida?

Em ordem aleatória: beber, comer, conversar com os amigos, dormir, sexo, drogas e Rock`n`Roll.

Onde podemos encontrar todas essas coisas ao mesmo tempo, ou pelo menos a possibilidade de todas ao mesmo tempo?

No bar.

O que faz do bar o lugar mais importante, onde conseguimos reunir todas as coisas mais importantes da vida, porque as melhores só podem ser as mais importantes.

Com isso, negar que a filosofia de bar seja a verdadeira filosofia atesta, no mínimo, desconhecimento da matéria.

*

A morte tem surgido à baila. Primeiro o acontecimento com o velho Cossio (que Deus o tenha, meu pai), depois a leitura do alemão Heidegger, a coincidência de ouvir “Canto para minha morte” do Raul três vezes no mesmo dia, o conhecimento do cantor italiano Fabrizio de André, que também morreu de beber e é vizinho à temática da morte, e por fim o filme “Il settimo sigillo”, de Ingmar Bergman, todo ele sobre a morte.

O momento do confronto com o desconhecido, ou o limite entre o tudo e o nada. A certeza do fim, de algum fim. A experiência única da vida. Quem sabe onde o pensamento atinge no momento crucial. A morte elimina todas as barreiras. O inevitável confrontar-se com a realidade plena.

Devemos pensar para morrer, diz o livro do alemão. Para mim, no sentido de “à morrer”, como quando se joga à morrer no campinho. Pensar valendo. Ignorar todos os limites que nós, a sociedade, os livros, qualquer um, possa ter inventado. Porque o limite é só uma invenção. Ter presente a situação da morte, que é uma das poucas coisas cuja possibilidade se apresenta em todos os dias da nossa vida, e pensar o quanto antes e sempre sobre o real valor das coisas. Transformar a vida em relação íntima com a morte. Não negação da vida, mas a consciência de que o confronto com a morte virá. Transformar a vida em relação com a morte de forma criativa ao ponto de apontar um sentido da vida. O real valor das coisas como a amizade, os discos, o bar, um carro, uma jaqueta, uma casa, o planeta. Discutir sobre isso, pelo menos.

Um pouco de Raulseixismo.

“Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida”

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Considerações sobre a verdadeira filosofia

A verdadeira filosofia é a filosofia de bar. É onde a vida se resume e acontece plenamente. Propriamente na mesa de bar. Sete pessoas e um universo de possibilidades. Por mais que tenham circulado livros, todos concordam que é justamente aqui onde se pratica a arte do conhecimento. Da produção do conhecimento. Banquetes de álcool. Música alta. Gritos, garçom. Discussões em voz alta em línguas meramente inteligíveis. Bar, e todas as suas bebidas, cada uma com a chave de uma janela mágica do pensamento. Alegria de compartilhar palavras, gestos, sentimentos, angústias e devaneios pelo deserto da mente. Alegria da amizade transformada em questões metafísicas. Onde pensar sobre o verdadeiro sentido da amizade senão numa mesa de bar? A alegria que nos envolve como uma força inexplicável, intangível e apenas vislumbrada em momentos como a reunião dos alcoólicos no seu próprio habitat. Influências de pensamentos religiosos de lugares tão diferentes como Alemanha, Jerusalém, Grécia e Índia. Conectados pela mesma energia que impulsiona a mente a questões como: o sentido da amizade; a alegria de estarmos juntos; a energia que nos envolve. Filosofia de bar. A verdadeira filosofia. A alegria de saber da existência da questão e a certeza de que teremos eternamente bons momentos em uma mesa de bar, porque não existe resposta. Só a conversa. Palavras. Perguntas e explicações eternas. Como o álcool. E a amizade. E a possibilidade de produzir conhecimento. E o cigarro com sua pausa para pensar. A meditação sobre a pergunta fundamental que está nos livros. Mas está lá por causa do bar. E assim como a fumaça que não sabe seu destino, as ondas da mente flutuam em um mar de possibilidades. Os mundos que se desenham dentro e fora do bar. Aquilo que existe mas não está aqui. A impossibilidade de explicar, e por isso remoer palavras, e remoer sons que possam indicar a existência da coisa. E falar. Deixar que a palavra conduza o pensamento até o limite da consciência. Receber a crítica até que ela não faça sentido. Recomeçar. E assim o garçom arruma o que fazer. E todos prestam atenção em todos. Exatamente como um filme. Como a providência divina que coloca tudo no seu exato lugar. E não conseguimos fugir do pensamento místico. Para alguns apenas a fraqueza de pensar. O que pode ser. Mas o místico é a razão elevada ao extremo. Quem não considera o místico simplesmente não quer passar os limites. E a porta do bar é sempre um bom limite a ultrapassar. Limite do racional. Na liberdade do bar a razão se explode. Talvez pelo álcool, pelo fogo. E no bar se pensa. Filosofia de bar; filosofia de vida.

terça-feira, janeiro 11, 2011

Questões, só questões

Pode ser chegado o momento de resolver a seguinte questão: sabemos que o sistema está errado; conhecemos o sistema a fundo; e não fazemos nada para mudá-lo.

O conceito base é que existe alguma coisa errada quando se vê um ser humano ajoelhado na calçada que pede qualquer moeda para matar a fome, e passa por ele um outro ser humano que acabou de gastar 1.500 euros em uma jaqueta de petróleo. Sob qualquer princípio formulado pela razão esse fato corriqueiro é errado. Agora surge a pergunta: como o princípio irracional dominante consegue fazer com que tamanha desigualdade seja transformada em algo normal, natural?

“É uma conseqüência do sistema”. Então, qualquer pessoa com o mínimo de bondade no coração, para deixar apenas no nível das emoções simples e não da racionalidade, deve admitir que o sistema é ruim.

De “conseqüência do sistema”, não é preciso muito esforço para chegar à conclusão de que desigualdades como essa são “necessidades do sistema”. O conceito básico de acumulação de bens e capital é auto-explicativo. A acumulação de uns é o prejuízo dos outros. Acumulação de riqueza gera potência de poder bélico, imposição do sistema através da força com o objetivo de maior acumulação. Assim a estrutura básica do sistema se perpetua com o aperfeiçoamento das formas de imposição. A força sempre presente, mas também a ideologia, a ilusão dos discursos, a obliteração das possibilidades. Força de uns; medo de outros. Aceitação das desigualdades enquanto lhe seja permitido sobreviver, ou seja: servidão, escravização. Aceitação das desigualdades através do acesso ao mercado de consumo de bens inúteis transformados em necessidade. E a necessidade de ter. E assim a aceitação da desigualdade pelo desejo de posse do inútil.

A solução pode ser pensada. Deve ser pensada.

Em um primeiro momento a noção de que a revolução libertadora é individual. Libertação do sistema “ter-querer-ter”. Meditação e consciência do real valor das coisas e como conseqüência do real valor da vida. Essa é uma revolução individual, sem dúvida. Porém precisamos estar livres para pensar. Quem pode ser responsável pela liberdade? Pode ser suficiente apenas a noção da irracionalidade do sistema como estopim para a libertação individual? De onde vem essa noção? Terá a educação em latu sensu (família, escola, comunidade, comunicação) a ver com isso?

Depois mais questões. Onde pode nos levar a revolução que triunfa no individual? Quais serão as possibilidades de transformação? Infinitas? Mas e aí, como ficam as escolhas, o conjunto? Será o fim do conjunto? O que vem depois, enfim?

sábado, janeiro 08, 2011

Re-evolução

Revolução. A passos lentos começa a fazer sentido. Um pé depois do outro. Sempre em evolução. Deriva interminável. A mente solta. Calçadas milenares não fazem sentido. Produzem ondas de pensamento. Revolução. Teorias individuais. Conceitos coletivos. Desejos de liberdade. Liberdade de não pertencer ao que é estável. Liberdade de não ter um objetivo. Preso no desejo de experimentar. Preso no desejo de criação do inimaginável. Conexões. A grande panela da história. Liberdade de não ver sentido. Liberdade do objetivo. Revolução constante. Re-evolução diária. Medo, claro. Prazer incontrolável e sereno. Embriaguês inconseqüente. Aperto na boca do estômago. Risco sensível. Procura de algo que não existe. Perguntas sem respostas. Não podem existir respostas. Seria o fim. Da revolução. Rostos. Prisioneiros de roupas. De desejos. Abolição dos desejos. Experiência. Experimento constante. Medo incontrolável. Tempo. O tempo mutante das decisões jamais tomadas. Liberdade das decisões. Desaceleração física; descontrole mental. Ondas de frio. Pensamentos passados em evolução. Futuro incerto. Caminhos obscuros. Ruas indigentes. Vitrines. Prisões. Olhos nos pés. Caminhos que não levam. Caminhos indefinidos. Deriva. E revolução. Re-evolução de uma espécie. Jamais. Ainda ruas. Ainda prisões. A busca de respostas é a resposta. Alemães malucos que enlouquecem. Latinos místicos que encantam. Árabes poetas que cantam. Orientais silenciosos que meditam. Re-evolução do mundo. Todos reunidos em cada um. A reflexão é o reflexo esperado. Liberdade. Papéis são só papéis. Pensamentos. Cada um eterno no seu átimo. Papéis desintegram. Prédios de terra voltarão à terra. Pensamentos eternos. Revolução constante. Criação. Destruição. Re-evolução. Embriaguês de ar. Necessidades. A pergunta que é resposta. Simples. Medo. Simplesmente aterrorizante na simplicidade. Liberdade. Objetivos destruídos. Vida plena. Angústia até o costume da liberdade. Medo. Revolução. Prazer. Desejo. Re-evolução infinita.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Baddu

O nome dele é Baddu. Negro é pouco pra ele, que veio do Senegal para a Itália há mais de 10 anos. Baddu é negão mesmo. Atualmente trabalha distribuindo panfletos nas esquinas de Bologna e assim consegue o mínimo para sua sobrevivência. Também faz bicos de segurança em algumas boates e eventos para garantir um extra. Apesar dos quase 2 metros de altura, o que sem dúvida o credencia para o trabalho de proteger os filhos de uma ex-Itália rica, Baddu não tem nada de assustador. Talvez seja uma das pessoas mais gentis que se pode conhecer. Antes de distribuir panfletos, ele trabalhou por oito anos como camelô na feira da piazzola, o maior mercado aberto da cidade (e depois dizem que na Europa não tem camelô, mas isso é assunto pra outra hora). Depois que a família abandonou a barraquinha, ele conseguiu emprego como carregador para um magazine de roupas e agora está nessa luta diária. Mas como eu dizia, Baddu é a gentileza em pessoa. Com seu italiano fortemente marcado pelo francês e wolof (língua típica) falados no Senegal, ele cumprimenta efusivamente todos os amigos que cruza na rua, sempre parando para uma pequena conversa. E todos param para conversar com Baddu. Outro dia falei que ele poderia se candidatar a prefeito. “Até podia, mas um prefeito fica longe das pessoas”, foi sua resposta. Outro dia ele me perguntou se eu voltaria para o Brasil. Disse que sim, que sentia falta do meu país e que hoje tenho certeza que não existe lugar como esse no mundo. “E tem família lá?”, perguntou. Depois da resposta afirmativa: “bom. Te digo que deve voltar para a família. Depois de muito tempo aqui se perde esse sentimento, de família, e não é bom. Aqui ninguém mais se entende, querem ser independentes e moram todos juntos. Brigam. Vivem nesse paradoxo e aí acontece o que estamos vendo. Querem resolver o simples pelo complicado. Se eles recuperarem o sentimento de família, recuperam o país”.

Essa é a universidade da vida. Em poucas e simples palavras o amigo Baddu, negão do interior do Senegal, vislumbrou e resolveu um grande problema sobre o qual doutores escrevem longas e complicadas teses. O sistema destrói os sentimentos básicos do ser humano e assim vagamos perdidos pelo mundo da competição, do dinheiro, da matéria, do comércio, do emprego, da solidão. Aqui destrói o que é uma das maiores tradições culturais do país, a união familiar, o gosto pela família e pelas relações humanas. Tudo isso em nome de quê? Doar sua vida aos interesses financeiros de outros? Quando voltarmos a ser todos irmãos teremos outro mundo, de justiça e respeito. E ele, meu amigo Baddu, faz muito por esse mundo. Distribui sorrisos e abraços pela cidade. Essa é a grande subversão do dia a dia. Gostar das pessoas.

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Fogo no boneco

É véspera de ano-novo. Em casa, tomando umas cervejas, como nas duas últimas semanas, sem pensar em muita coisa. Talvez um pouco preocupado, porque só tem mais duas latinhas. Sim, a vida é difícil. Principalmente nesses momentos de fim da cerveja. Mas estou aqui, fazendo uma coisa que nunca fiz em minha vida e nunca mais vou fazer: ouvindo o programa Sala de Redação da Rádio Gaúcha. Se a vida já estava ruim, ficou ainda pior depois que começou essa (desculpem a palavra) merda radiofônica.

Imaginava que era um programa sobre futebol, mas os “jornalistas” começaram falando sobre o movimento nas estradas gaúchas. Até que um gênio, talvez o Kenny Braga (tudo bem, é colorado, mas por favor...), diz para o éter radiofônico: “eu não entendo porque as pessoas passam horas na estrada para chegar às praias, eu não faço isso por nada nesse mundo. Por que não fazem isso em qualquer outra época do ano?”. Claro, para quem vive num condomínio e trabalha para a firma com um gordo salário é difícil imaginar esse tipo de coisa. Talvez ele não saiba que essa é a única folga que a turma tem dos seus trabalhos escravos e se submete a qualquer coisa por um pouco de sol ao ar livre e um banho de mar para aliviar o calorão.

Mas ele não parou por aí, e largou outra pérola muito repetida pelos nossos comentaristas do nada: “em compensação Porto Alegre fica maravilhosa nessa época. Não tem ninguém na rua, a cidade fica tranqüila, se pode andar por qualquer lugar sem encontrar aquela multidão”. Eu, como sou um ignorante, fiquei pensando. Por que um homem desses não vai viver na campanha, na cidade de Colorado no interior, ou não se isola num sítio? Claro, assim ele poderia passar o ano inteiro sozinho, e não apenas as duas semanas entre o Natal e o Ano Novo. Mas não, ele insiste em sofrer cotidianamente com o contato com outras pessoas, por apenas duas semanas de paraíso na capital gaúcha.

Tá certo, pra que sofrer. Desliguei o rádio. Os bologneses se preparam para a virada. Tomo os últimos goles e, como eu particularmente gosto do contato com outras pessoas, vou para a praça central da cidade. Uma multidão assiste a um show e se prepara para receber 2011. Já tinham me dito que os italianos loucos comemoram a virada queimando um boneco e quebrando garrafas. O que imaginar disso? Só vendo para crer. E lá estava ele, um sapo gigante, de pelo menos 15 metros de altura, montado ao lado do palco, iluminado por holofotes. Se aproxima a meia noite. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1..... e eles tocam fogo no boneco! Nada de fogos,de artifício, fogo no boneco! E barulheira de garrafas quebradas! É bom estar atento para não tomar uma na cabeça. Daqui a pouco bombas, tipo aquelas de jogo de futebol. Sinalizadores de fumaça. Mais garrafas quebradas, o boneco ardendo em chamas, senhoras de idade que se abraçam com crianças, jovens que correm felizes, um indiano nu dança na multidão, um bêbado serve vinho espumante para qualquer um, mais garrafas quebradas, e a polícia não faz nada. Tudo normal. Afinal é gente, e gente reunida faz esse tipo de coisa.

E o Kenny Braga não viu nada. Estava no seu condomínio com meia dúzia de amigos, abriu um Champagne e dormiu cedo, aproveitando a capital vazia. Fazer o quê. Cada um sabe da sua vida. Mas prefiro tocar fogo no boneco e quebrar garrafas com o povo do que viver na solidão do dinheiro e do preconceito.