terça-feira, março 01, 2011

Medalhista

A internet é mesmo fantástica. Fui procurar o significado da palavra hipostatização. O dicionário Michaelis do UOL, que está nos favoritos, não me deu nenhum resultado. Então parti para o oráculo (Google) e digitei: hipostatização. Apareceu uma lista de sites com textos onde aparecia a tal palavra, mas nenhum com uma explicação sobre seu real significado (imagino que os autores dos textos realmente a usavam por repetição, sem saber o que significa). Então digitei: hipostatização dicionário. De fato apareceu um blog onde o autor de um texto, no fim, colocava a definição de hipostatização segundo o dicionário Houaiss:

“segundo a reflexão moderna e contemporânea, equívoco cognitivo que se caracteriza pela atribuição de existência concreta e objetiva a uma realidade fictícia, abstrata ou meramente restrita à incorporalidade do ser humano”.

Depois de pensar como isso poderia ser encaixado no texto de Adorno “A filosofia da música moderna”, voltei para o computador e me deparei com o tal do blog onde tinha achado a definição da palavra. Foi aí que começou toda a diversão que me levou a formular a frase: “a internet é mesmo fantástica”.

Para começar, o site se chama “Liberal Space: Blog de Eduardo Chaves”. Ao lado do nome uma pequena frase, “Em defesa da liberdade”, e logo abaixo a foto de uma piscina gigante em meio a árvores exóticas no jardim de uma mansão, provavelmente uma chácara de fim de semana, já que não se vê nada além de colinas verdejantes no horizonte. O texto que apareceu, porque constava a palavra hipostização, se chama “O mercado (I)”. Me prestei a ler, só por curiosidade. Começa falando de uma reunião entre Margareth Thatcher e Mikhail Gorbachev, onde o russo perguntou pra velha o que ela fazia para garantir a alimentação do povo britânico. “Nada, respondeu assustada a Dama de Ferro, o mercado se encarrega disso”. Eis que através desse exemplo, o medalhista* Eduardo Chaves começa a falar da cidade de São Paulo. Nada melhor do que as palavras do próprio autor para se ter uma idéia de sua teoria:

“Os críticos da economia de mercado parecem imaginar (pelo menos é o que suas falas sugerem) que o mercado é algum misterioso e sinistro ser que age nos bastidores para garantir que os ricos tenham o que querem e os pobres não tenham o de que precisam. (...) Mas o mercado não é nenhum agente misterioso e sinistro. O termo se refere apenas à totalidade das iniciativas de troca, compra e venda que nós todos fazemos. (...) Imaginemos a cidade de São Paulo. No mínimo dez milhões de pessoas ali vivem. Entre outras coisas, essas pessoas precisam se alimentar todos os dias. Um indivíduo à la Gorbachev se indagaria: “Que providências são tomadas para que esse povo todo tenha o que comer todos os dias?” – imaginando, naturalmente, que alguém tomaria essas providências: uma pessoa ou um comitê de pessoas. Mas a realidade é que ninguém toma essas providências de forma centralizada.(...) A tarefa é realizada porque milhões de produtores e distribuidores de alimentos, cada um cuidando de seus interesses, sabe que as pessoas nessa enorme cidade precisam se alimentar e se encarregam de disponibilizar os alimentos para a população – por um preço, naturalmente. Como diria Adam Smith, e Mikhail Gorbachev, pela sua pergunta, concordava com ele, tudo parece acontecer “como se” uma “mão invisível” efetuasse o planejamento, controle e coordenação da produção e distribuição de alimentos para a população. Como na União Soviética ele era o responsável último pelo planejamento, controle e coordenação da produção e distribuição de alimentos para a população, e não estava conseguindo cumprir a contento sua tarefa, ele imaginou que, na Inglaterra, a “mão” que fizesse isso fosse a de Thatcher… Já seria notável que toda uma população de no mínimo dez milhões de pessoas tivesse algo básico com que se alimentar todos os dias: pão e leite, digamos. Mas não: as pessoas têm uma incrível escolha de bens e serviços que atendem não só às suas necessidades básicas mas aos seus desejos mais diferenciados e sofisticados. Há alimentos frescos, congelados, desidratados, em latas, orgânicos, tipicamente brasileiros, dos diversos estados brasileiros, e, também, americanos, chineses, japoneses, italianos, mexicanos, franceses, libaneses, indianos, etc. As pessoas podem comprar os ingredientes e fazer sua própria comida ou podem comprar a comida já pronta – em restaurantes, lanchonetes ou mesmo de ambulantes, ou para consumo em sua própria casa, mediante “delivery”.”

Essa última parte foi grafada porque é realmente uma peça de gênio. Um gênio que provavelmente vive no seu escritório da Avenida Paulista e não faz a menor idéia de que uma boa parte da população da querida cidade de São Paulo PASSA FOME, e essa é uma necessidade de um mercado do luxo para a burguesia como o descrito pelo ilustre Eduardo Chaves. Já não me divertindo muito com a experiência, fui dar mais uma vasculhada no tal do blog. Entrei no link “Sites Liberais”. Voltou a alegria. Entre sites oficiais de grandes nomes como o adorado Adam Smith, estão pérolas do naipe de “Capitalism Magazine”, com o comentário “excelente revista online só de artigos liberais”, ou “Capitalism Site”, com o comentário obvio de “vale a pena conferir”. Fiquei só um pouco chateado porque não tinha um link para a revista Veja, mas pensando bem, o tal periódico pode ser considerado muito fascista para um liberal desse quilate.

Enfim, eu não estaria escrevendo tudo isso se o medalhista de ouro Eduardo Chaves fosse um Zé Ninguém. Mas a um certo ponto comecei a me perguntar quem seria esse ser, e a resposta veio mais uma vez do oráculo:

“Sou Eduardo Chaves, Professor de Filosofia da Educação, Filosofia Política e Teoria do Conhecimento na UNICAMP, especialista no uso de tecnologia na educação, empresário, são-paulino, amante de música antiga (tanto brasileira, como americana e francesa) e de bons filmes, liberal em política (liberal clássico, laissez-faire, não neo-liberal)”.

Esse é o problema. Meus pobres colegas estudantes de filosofia da Universidade de Campinas são obrigados a ouvir babaquices do tipo que todo mundo se alimenta bem em São Paulo por causa da benevolência do mercado. Tornei ao blog, só para fechar a janela e nunca mais olhar para esse tipo de coisa e um último pensamento me veio à mente. A pequena frase “Em defesa da liberdade” significa a defesa da liberdade dos empresários de ter uma piscina numa mansão longe, muito longe, da realidade do povo brasileiro. E eu concordo com isso, ele só não precisava era sair de lá para ensinar idiotices numa renomada Faculdade de Filosofia.

*Medalhista é uma gíria cunhada em parceria com o amigo Lúcio Sassi e significa um personagem com idéias ou ações tão absurdas ao ponto de receber uma medalha que pode ser de ouro, prata ou bronze segundo nosso critério de idiotice.

10 comentários:

Nini disse...

Já diziam os Ramones,
"Mondo Bizarro"...

lucio sassi disse...

dalhe mauricio, só pra informar a loja de medalhas cresceu o cara alugou a sala ao lado, o negócio vai de vento em popa abs

Anônimo disse...

Sua anta, aquele palácio é um monumento histórico da cidade de Salzburgo, Áustria, e funciona como sede do Seminário Global de Salzburgo, uma organização sem fins lucrativos e bastante influente. Se vai criticar alguém pela foto que ele põe no seu blog, ao menos pesquise sobre ela.

Anônimo disse...

E para sua informação, na União Soviética morreram milhões, sim, milhões de fome, sob o regime de economia planificada. A forma mais eficiente de redistribuição de renda continua sendo a liberdade econômica, e não uma economia planificada por um partido déspota que tenta controlar nossas vidas até os mínimos detalhes.

Anônimo disse...

O mais estranho é culpar o capitalismo pela fome mesmo depois da excelente explicação do professor. Este post merece medalha de ouro, de acordo ao seu critério. Não é a "benevolência do mercado" que alimenta as pessoas, mas a ganância do comerciante, ajustando preços e produzindo mais para atender às demandas do consumidor. Mostra que você não entendeu o que é hipostasia: cometeu a falácia mesmo depois de ter lido o que significava. Como atribuir "benevolência" a um conceito — o mercado?

Anônimo disse...

Estranho você se achar lúcido e criticar que um professor defenda ideias liberais em uma Universidade. O próprio conceito de UNIVERSIDADE já indica que ideias diversas (e não apenas a que você considera boas) devem ser debatidas nesse espaço.

Sua argumentação contra o professor é: o liberalismo é errado porque pessoas passam fome em São Paulo? Sério? 45 milhões de pessoas morreram de fome na China comunista durante o processo de coletivização do trabalho nos anos 1958 a 1962.

Medalha de ouro para você!

Geraldo disse...

Sr. "Anônimo".

Busque estudar um pouco mais a história para se inteirar de um elemento basal, corriqueiro e amplamente consensual (caso não sejas capaz de constata-lo empiricamente pela sua pobre observação): em nenhum momento na história houve mercado livre. Nem na ilha de Peter Pan.

Outro elementar conceito sobre essa matéria: "renda" só pode obter aquele que tem posses, sejam meios de produção ou bens para o comércio. Jamais bens ou meios para reproduzir apenas a si mesmo. Portanto, salário não é renda (não pense que a definição disso está no imposto que você paga ao Estado liberal que lhe embolsa isso). O capital gera renda (ou deveria gerar) a quem dispõe dele e o emprega no circuito de valorização. O salário é reposição do valor da força de trabalho.

Assim, é um absurdo lógico afirmar: "A forma mais eficiente de redistribuição de renda continua sendo a liberdade econômica". Procure um país com pleno emprego e sem concentração de renda em toda a história do capitalismo. Não encontrarás.

O que o rapaz do blog criticou não foi uma defesa de ideias liberais de um professor. Foi a fragilidade do argumento (e do exemplo dele). E se você não concorda com os regimes totalitários que ocorreram nesses países que você cita, saiba que muita gente não concorda, o que não quer dizer que não haja história pela frente.

O capitalismo, sendo histórico, certamente passará, independentemente das ideias de pessoas como você, que o naturalizam. Pois, como em todos os outros modos de produção, ele também traz em si, em germe, os elementos que o lançarão aos ares, inaugurando um novo (embora não eterno) porvir.

Abrs!

Orlando Pereira disse...

Que absurdo! Os países do norte europeu têm baixíssima concentração de renda com pleno emprego dentro de um sistema capitalista. É melhor se informar direito antes de escrever besteira na internet!

Unknown disse...

Hipostatização vem de hipostasia que significa algo que faz base a alguma outra coisa, algo que está no fundamento. Para entender melhor o termo vale a pena pesquisar o termo grego hypokeimenon. Hypokeimenon, a rigor, seria o fundamento da experiência de mundo, possibilitaria a abertura de mundo, seria o pré-requisito para a possibilidade das significações, ou seja, sem ele não há experiência de mundo possível. O filósofo Martin Heidegger explora essa temática muito bem em suas obras utilizando-se do termo alemão Dasein, que pode ser traduzido como ser-aí.

Charles Gouveia disse...

A minha experiência foi pior: joguei a mesma palavra no google, procurando o significado, e caí esse textinho.