quarta-feira, julho 20, 2011

Mendigão

A frase é da minha esposa: “tu não perde a mania de fazer amizade com os mendigos”. Dita assim, com um nítido tom de desaprovação. Mas realmente não posso fazer nada contra isso. Primeiro porque sou um alcoólatra como todos os mendigos do mundo. Segundo porque sou fascinado pela “encantadora alma das ruas”, e ninguém melhor que um mendigo para saber o que é essa tal alma. Fato é que, em tardes ensolaradas deste belo verão europeu, junto umas moedas, compro a bira mais barata do mercado e me sento na praça a espera de companhia. E não demora a chegar. Em pouco tempo somos um belo grupo bêbados em plena segunda-feira a rir e conversar ao redor de um banco de praça. O melhor dos mendigos é que são bons contadores de histórias. Um deles foi um quase grande jogador de futebol. Chegou a jogar nos profissionais do Bologna F.C., o glorioso “rossoblu” das Duas Torres, mas trocou a bola pela bebida. Ele é um pouco relutante a falar do seu passado de glória, mas os outros mendigos o provocam: “esse é uma lenda”, “jogava muito”, etc. Pouco a pouco ele começa a contar histórias de jornadas épicas, como vitória de 3 a 0 sobre a Juventus em 70 e alguma coisa. Até que percebe minha camisa com a foto do Jim Morrison: “esse era o problema, naquela época as festas eram boas de mais. Rock’n’Roll, ta ligado?”. Tô, tô ligado. E o outro pega o gancho e começa a contar dos 32 apartamentos que seu pai deixou de herança e foram transformados em pó. Não me contenho e digo “bom, pelo menos alguma festa viveu esse corpinho”, e com um meio sorriso ele conta de noitadas de três dias na conexão Bolívia-Itália. Um momento de silêncio, e parece que todos nós começamos a refletir na vida. Bem ou mal estamos aqui, tomando uma cervejinha com os amigos na praça. Quando inesperadamente chega outro companheiro: “ei, tu que é estudante, olha o que eu achei”, e puxa um maço de folhas de dentro de uma mochila abarrotada de livros. Ele é conhecido como o “mendigo filósofo” e me entrega as folhas de um manuscrito batido a maquina que fala sobre o problema básico de qualquer ser humano: o que é que eu estou fazendo aqui nessa merda de mundo? Entre Nietzche, Freud, Kant e Platão, linhas de um texto original e muito bem escrito. O interessante é que o papel parece novo e pelos sulcos na folha, recém batido. “Ta, mas tu achou ou foi tu que escreveu isso aqui?”. Um meio sorriso. “Vai comprar ou não?”; “Não tenho dinheiro”; “Então deixa pra lá”. Abre novamente a mochila, guarda o manuscrito e me faz olhar os livros. Enquanto isso, a turma se prepara para o início de um jogo de cartas. Tomo o último gole da minha cerveja e já estamos entrando na embriaguês. Abandono a praça antes que fique tudo muito chato e a “encantadora alma das ruas” se transforme da coisa mais repetitiva do mundo. O importante é que já estou preparado; se algum dia virar mendigo já sei como me comportar.

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