segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Discurso

Às vezes uma noite não é o suficiente para que determinadas substâncias abandonem o nosso ser. Isso é facilmente constatado pela análise dos pensamentos da manhã, naquele meio termo entre o sonho e a realidade. Se são apenas passagens soltas na memória, ou uma música que não para de tocar, está tudo bem. Agora, se eles começam a fazer sentido e se encaixam perfeitamente em uma história absurda, bem, pode ser indício de que alguma coisa ainda age na cabeça.

Toda essa introdução é só para dizer que hoje de manhã eu ganhei um prêmio Nobel. Nossa teoria (nossa porque tem o crédito de todos os que vieram antes e dos atuais militantes da Filosofia de Bar) da Revolução Individual ganhou grande repercussão, até ser considerada como um percurso viável para a humanidade e não só um discurso de bêbados da madrugada. Eis que lá estamos nós (cada premiado tem direito a 10 convidados) na tal da academia que dá o prêmio. Jantar de gala, autoridades, milionários, grandes personalidades, enfim, a fina flor da sociedade mundial. E nós que arrumamos confusão já na entrada, porque o segurança não quer nos deixar entrar de calça jeans, camiseta dos Ramones e jaqueta de couro. Tiveram que chamar o presidente da associação do Nobel pra nos deixarem entrar. Parece até que o Lula, que era um dos convidados de honra da festa, também falou alguma coisa a nosso favor.

O fato é que entramos e enquanto o pessoal do Nobel de matemática, economia, literatura, jardinagem, culinária, etc. discursava, nós nos encarregávamos de fumar um cachimbo de substâncias especiais. Finalmente chega o momento do grande prêmio Nobel da Paz. Vou em direção ao púlpito e faço o seguinte discurso:

“Antes de mais nada, obrigado a minha família e aos companheiros de longas jornadas que ajudaram na elaboração da nossa teoria. Obrigado ao povo que comprou nosso livro e mais ainda a quem acreditou no que estava escrito ali. Mas eu estou aqui para falar de contradições. Eu olho para todo esse espetáculo e imagino o quanto não se gasta para organizar essa festa toda. Antes de subir aqui, fiz alguns cálculos e cheguei à conclusão que só essa noite consumiu pelo menos dez vezes mais dinheiro do que todo o gasto que eu e minha esposa tivemos nos dois anos que passamos na Europa. Ou seja, só com a economia de não fazer essa festa, poderíamos sustentar 20 novas famílias por um ano. Mas isso não significa nada. Pra vocês uma janta como essa é coisa normal. Digamos que para aqueles mais ativos são, o quê, uns 30 eventos como esse durante o ano. Ou seja, 600 famílias sustentadas por um ano. Mas isso não significa nada. Porque eu não estou contando o papelão que seria repetir um vestido, uma jóia ou um sapato. Nesse caso subimos a quantia a valores inimagináveis gastou com encontros absolutamente fúteis, e que dizem ser politicamente corretos. Mas não se preocupem, porque eu não pretendo entrar em contradição. Esse discurso não é um discurso contra vocês, já que depois desse um milhão de dólares que recebi eu me considero integrante do clube. Inclusive aproveito a ocasião para dizer esse dinheiro será gasto exatamente como vocês fazem: em bebidas, drogas e prostituição. Obrigado”.

Aplausos efusivos da minha turma. Exceto pela minha mãe, que está chocada. Bem, nem tanto. Ela já imaginava que alguma coisa assim podia ter acontecido e me diz: “ai meu filho, pelo menos essa vez podia ter feito alguma coisa decente”. E com esse final sou obrigado a me levantar e começar mais um dia da minha vida mijando todo o álcool da noite anterior.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Depressão

Abro a caixa de correspondência e, junto com propagandas de restaurantes que oferecem um bife por 15 Euros, encontro o seguinte bilhete escrito a mão:

“Lina, procuro trabalho. Russa, 55 anos, limpa, regular, seria, com experiência, posso passar roupas bem, limpar, fazer companhia.... Tel:347-8087415”

Que tristeza. Minha depressão alcoólica chegou ao limite, e chorei. Chorei ao imaginar a senhora de 55 anos escrevendo sabe-se lá quantos bilhetes iguais a esse sentada na cozinha do seu apartamento. Chorei ao imaginar o desespero que a levou a fazer isso. Chorei ao imaginar o quanto ela não rodou pela cidade, entre agências de emprego e anúncios de jornal, para ouvir sempre o famoso “não” de quem tem os empregos. Chorei por viver numa sociedade onde uma mulher de 55 anos já é velha demais para trabalhar, jovem demais para morrer e não tem direito a uma vida digna. Chorei porque provavelmente muitos dos que receberam esse bilhete riram ou reclamaram da sujeira que as pessoas colocam nas caixas de correspondência. Chorei de raiva porque muito provavelmente quem sentiu a mesma tristeza depois pensou: “é triste, mas o mundo é assim”. Chorei porque o mundo somos nós quem o fazemos e nossa obra é grotesca, cruel e sem sentido. Chorei porque as pessoas acham tudo isso normal. Sim, e chorei porque ontem tomei um porre de bebida falsificada e não posso nem tomar água que vomito. E isso só confirma o fato de que esse nosso mundinho é uma merda.

Música

A experiência musical coloca o homem em confronto com a potência da natureza (talvez da sua própria natureza), no sentido em que nos encontramos no estado de ânimo entre o terror e a satisfação plena perante o desconhecido. A música é a arte do desconhecido. O som, que é uma língua “não língua”, e consegue tocar direto na alma do ser, naquele lugar que não é nem experiência positiva empírica da realidade, nem imagem racional, nem divagação mental. Música é o nome desse momento em que somos atingidos no fundo da nossa alma pelo som. E a música nos remete ao estado de ânimo ideal (entre o terror e satisfação plena) que nos impulsiona na busca pelas respostas, a procurar no interior da nossa consciência e no seu relacionamento com o mundo exterior uma explicação aos fenômenos que nos perturbam. A música precede a ciência. A música precede a filosofia. A experiência musical é condição necessária para o desenvolvimento da boa ciência e da boa filosofia. A arte, a sensibilidade artística, atinge seu ápice na sua forma mais abstrata, a música, e só assim nos reconhecemos na origem do ser humano. Nós dominamos o mundo, mas ainda não o entendemos. Ainda não entendemos a natureza. Essa é a mensagem da música. Essa é a reflexão necessária para o desenvolvimento e o progresso da filosofia e da ciência rumo a um mundo de harmonia. A ressonância da música através da história sempre esteve ali para nos lembrar. Aqueles que percebem sabem que não é fácil. O caminho da humildade perante a força da natureza é difícil. Admitir sua potência é o primeiro passo para sua compreensão. A música é o instrumento que reverbera na caixa acústica da humanidade a possibilidade de viver em paz, em harmonia e em ritmo de acordo com a natureza do mundo, que é a mesma natureza de cada um de nós. Pensar a música é pensar nessa força desconhecida. Pensar através da música é buscar na relação homem/mundo a chave para a realização do projeto de paz e felicidade. Mas não será esse o fim? E quem se importa? Não será mais alcançável. Como sempre, o importante é buscar o caminho e saber que o desconhecido sempre estará ali, seja no sistema dodecafônico que elevou a música ocidental ao seu mais elevado limite de complexidade, ou na junção mais simples de três acordes básicos tocados por um negro do Mississipi.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Velha e nova filosofia

A filosofia acaba comigo. Nos últimos dias tenho vivido intensamente a verdadeira guerra entre idealistas e positivistas. Guerra, com certeza. Se fossem eles também adeptos da nossa já tradicional Filosofia de Bar, teríamos o prazer de acompanhar quebra-paus homéricos (hegelianos, wittgenstainianos, schopenhauerianos, fregianos...) pelas ruas da Europa. Isso porque eles são muito apegados às suas idéias. Não aceitam que alguém possa pensar diferente. Para não darem o braço a torcer, exercitam suas mentes em impressionantes exercícios de lógica até não chegarem a conclusão nenhuma, o que significa que, pelo menos, o outro não está certo.

Vejamos por princípios gerais. Os idealistas acreditam que todo o mundo é fruto da nossa mente, ou seja, não existe nada fora dos pensamentos, das idéias. Daí o seu nome. Por causa dessa concepção, o mundo para eles, ou para todos nós, no caso, nunca será nada mais do que a mera representação que fazemos das coisas que estão ao nosso redor.

Já os positivistas acreditam plenamente que o mundo existe fora das nossas geniais cabeças, e o máximo que podemos fazer para conhecê-lo é perseverar nas nossas experiências empíricas. Ou seja, nós nunca poderemos conhecer a totalidade das coisas, porque nosso conhecimento depende da ciência e essa, além de infinita, pode mudar de uma hora pra outra e com ela todo o nosso sistema de conhecimento.

E eles realmente brigam por causa disso. Escrevem artigos irônicos uns contra os outros. Escrevem obras longuíssimas recheadas de exemplos que provam suas teorias. Escrevem, escrevem, escrevem.... por quê?

Acabamos de ver nos dois parágrafos anteriores que eles concordam em um ponto: jamais vamos ter certeza dessa porra toda. Se a nossa incerteza é fruto da nossa mente ou da impossibilidade que apresenta a própria natureza não quer dizer nada. A incerteza permanece. É muito mais importante pensar no nosso papel no mundo do que como nós percebemos o mundo. Até porque a incerteza de qualquer escola do pensamento é a grande prova de que não somos nada, absolutamente nada, para a imensidão do universo. O problema é que os sistemas de pensamento desenvolvidos até hoje nos tornaram arrogantes. Sempre tentamos dominar o mundo através do pensamento sobre o que é esse mundo. Acreditamos que podemos, ou pior, devemos dominar a natureza. Por causa disso somos obrigados a viver com essa noção de progresso que temos hoje, que para piorar foi costurada com a noção de crescimento econômico. Dominar a natureza para gerar mais riqueza. Esse é o grande fruto do pensamento ocidental e de todas as suas escolas.

Não seria belo se, nesse momento histórico de emancipação da América Latina, nós também não fundássemos a nossa própria filosofia, destacada de vez da tradição européia? Nosso povo já tem todos os ingredientes: alegria, cooperação, amizade, força, orgulho, respeito. Com um pouco de esforço podemos racionalizar isso, buscar nas nossas tradições mais profundas e milenares o respeito pela natureza e o sentimento de igualdade entre homens, animais, plantas e planeta. Podemos criar a sociedade do futuro. Já temos riqueza suficiente; temos material humano; temos tradições. Sim, acredito plenamente que nós podemos. O problema é: quem está disposto? Quem tem coragem de encarar o desafio? Quem tem coragem de abrir mão dos seus privilégios? Aí, meu amigo, o buraco é mais em baixo. Pelo menos enquanto tivermos uma elite (cultural, política e econômica) que pensa fazer parte da Europa.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

A (i)lógica da linguagem

Pego um livro que parece importante: “A estrutura lógica da linguagem”. Uma coletânea de textos, dos quais o primeiro é do grande G. Frege, assim, com intimidade. “Über Sinn und Bedeutung”. O quê? Não sabe alemão? Pois essa é uma das premissas para ler um livro desses, já que o tradutor se recusa a traduzir Bedeutung. Depois de explicar a impossibilidade da tradução do termo ele diz que, tudo bem, vai usar a palavra Denotação para indicar Bedeutung, e assim o título do texto fica: “Sentido e Denotação” (que no caso está escrito em italiano e eu tomei a liberdade de traduzir para o português, que pode significar um sacrilégio e eu deveria também dar minha explicação de tradução, mas acho que isso já é o suficiente). Até aqui tudo bem. Mas começa o texto. E o nosso amigo G. se pergunta se a = a é a mesma coisa, ou não, do que a = b. Parece muito para minha cabeça, mas vamos lá. Porque se dissermos que a = b, isso significa implicitamente que a = b é a mesmo coisa que a = a e daí teríamos que admitir como correta a formula a = b = a, o que me parece muito estranho. Mas tem mais. O que me garante que no caso b seja alguma coisa em perfeita relação de igualdade com a? Nesse caso, b poderia ser chamado de b, ou seríamos obrigados a dizer que b não é b em hipótese nenhuma, e sim a? Chega mesmo. Daqui eu não passo.

E tem gente que diz que entender esse tipo de coisa é, provavelmente, a coisa mais importante que podemos fazer da nossa vida. Eles não se contentam em admitir que as pessoas conversam, se entendem, e basta. Um dia eu falei essa heresia no curso de Filosofia da Linguagem, onde se estuda Wittgenstein. Meu amigo... metade da turma ficou horrorizada e a outra metade simplesmente riu da idiotice que eu tinha falado, inclusive a professora. Porque pra eles parece ser inadmissível o fato de que as pessoas conversam e se entendem. Isso é impossível. Pelo menos até o dia em que descobrirmos se a = b é igual a a = a. Entendeu? Isso é o importante.

E tem mais. O alemão Wittgenstein diz que só podemos falar as coisas que possuem forma lógica e que todo o resto simplesmente não pode ser dito. O problema (pequeno problema) é que cerca de 90% de tudo o que falamos é o resto. Ou seja, para ele as pessoas falam coisas sem sentido e uns fingem que entendem os outros. Por causa disso o mundo é essa merda que vivemos. Ninguém se entende. Esse é verdadeiramente um grande problema. Mas ainda assim persiste o fato de que as pessoas conversam e se entendem. E agora? Como solucionar esse incrível paradoxo? Infelizmente ainda não sei, mas prometo que vou ficar o resto da noite olhando para as letras a e b do teclado para ter certeza se elas são mesmo diferentes ou existe a possibilidade de serem iguais ou....

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

A decadência da juventude

A juventude é uma coisa engraçada. Aqui na Itália, por exemplo, enquanto o “Papi” faz o que quer no governo eles brincam de Segunda Guerra Mundial. Semana passada começou a se falar aqui em Bologna na possível abertura de um centro social da “Casa Pound”. Essa é uma associação da juventude fascista, Pound em homenagem ao poeta Ezra Pound, que apoiava abertamente o regime de Mussolini. Os outros centros sociais, tanto os comunistas quanto os anarquistas, começaram a se movimentar em uma série de protestos contra essa possibilidade. “Bologna é anti-fascista”, gritam os jovens nas festas. Sim, porque não existe um protesto sem festa aqui em Bologna. Ou seja, os bêbados de Lênin e Bakunin bebem contra os bêbados de Hitler e Mussolini.

O que é totalmente diferente do Brasil. Como esquecer as memoráveis lutas por um restaurante universitário na faculdade de Educação Física encampadas pelo DCE da Ufrgs? Somos muito mais realistas que os Europeus. Mas muda alguma coisa? Enquanto nossos governos fazem de tudo para ajudar nossos honrados empresários a transformarem nosso país em uma economia capitalista de primeira linha estamos preocupados em alimentar os filhos da burguesia com uma refeição barata de R$1,30. Não sejamos hipócritas. Os estudantes da Ufrgs são os filhos da burguesia, e as exceções só confirmam a regra.

Que época é essa onde os jovens perderam o fio da meada? Quando aconteceu isso? O fato é que perdemos um pouco a noção da realidade presente. O fato é que assimilamos demais o discurso de que o sistema é esse e nada pode ser mudado. O fato é que os jovens estão muito preocupados em se tornarem adultos o quanto antes. O fato é que os jovens se esqueceram de sonhar.

A função número 1 do jovem deveria ser afirmar a sua humanidade, exigir seu direito de ser humano. Isso faz parte da construção do indivíduo e, em conseqüência, da sociedade do futuro. Afirmação da humanidade em seus direitos fundamentais: direito à felicidade, à dignidade, à vida. Somente depois de afirmada a humanidade se parte para suas conseqüências imediatas: respeito à felicidade do outro, à dignidade do outro, à vida do outro. Depois de reconhecidas as conseqüências se estabelecem os meios: direito ao trabalho, direito ao ócio, igualdade nas relações. E daqui surge a luta da juventude para que seu programa seja reconhecido pelas instituições oficiais. Uma luta independente da forma, do tipo de organização ou dos meios que se utiliza. Mas uma luta racional. Não uma brincadeira de Segunda Guerra Mundial ou a exigência de um restaurante barato para os filhos da burguesia.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Mundo globalizado

Amistoso internacional é uma das coisas menos emocionantes do futebol. O povo só olha porque as principais emissoras dos países têm contratos com as confederações nacionais e com a FIFA. Mas também não tira nenhum pedaço parar duas horas e olhar o time nacional na TV. Na Itália é a mesma coisa que no Brasil. Apesar do descaso geral, tem aqueles que saem com bandeira, camisa e xingam o aparelho na esperança que o técnico escute alguma coisa do outro lado. Mas Itália e Alemanha foi um jogo tão chato, mas tão chato, que lá pelos 15 minutos nem esses fanáticos estavam mais prestando atenção. Afinal, o bar tinha vantagens insuperáveis, como cerveja barata e comida de graça. Mesmo assim, ainda faltava alguma coisa para a consolidação da alegria geral na mesa. O que poderia ser? O que estava faltando?

Confusão, é claro. E não demorou muito para acontecer. Depois de uns cinco mini-sanduíches de mortadela, um pote de batatinhas e uma rodada de cerveja vermelha, começa a gritaria na rua. Imediatamente todos se viram para olhar. Na pizzaria da frente, o cozinheiro com cara meio de árabe sai irado com um bastão de ferro e desafia um outro meio árabe que resiste e encara a briga na calçada. Correria. O dono da pizzaria estava no bar; voa para a rua. Dois de nossa mesa também correm. Mais para saber de perto o que acontecia do que para servir de “turma do deixa disso”. Gritos, ameaças, meia dúzia de sopapos, chutes, e a situação se acalma. Dali a pouco o dono da pizzaria acompanha o cliente raivoso pela rua tentando acalmá-lo e retornam os amigos com as notícias para acalmar nossa curiosidade. Boas notícias, pelo riso que carregam junto.

O fato: o cliente era curdo e enquanto comia sua pizza xingava o ex-ditador Saddam Hessein de tudo, inclusive de ditador, e bendizia a invasão dos Estados Unidos. O que ele não sabia era que o cozinheiro era um sunita iraquiano, orgulhoso do seu país, mesmo com seu ditador, e totalmente contra a invasão externa. Ou seja, uma briga secular iraquiana tomou forma, como por mágica, nas ruas de Bologna. Coisas da globalização, diriam alguns.

Os italianos, brasileiros e alemães da nossa mesa se divertiram muito com a história. Para nós esse tipo de briga não tem sentido. É muito mais justo arrumar confusão por conversar com a mulher de alguém, ou olhar para a pessoa errada. Esse negócio de nações e religiões não está com nada.

Mais uma rodada de cerveja austríaca, ou romena, ou holandesa, tanto faz, e a Itália empata a partida. Alegria dos “Fratelli”, tristeza dos alemães, e indiferença dos árabes, brasileiros, franceses e espanhóis. Agora a noite estava encaminhada. Mais um copo de cerveja e ao sair do bar a rua já está com um princípio de ares babilônicos. Massa de gente que faz a alegria dos marroquinos do comércio de produtos típicos da sua terra, se é que me entendem. A essa altura, nada melhor do que comer um Kebap feito pelo pessoal do Bangladesh. Eles têm a manha. Mais uma cerveja, dessa vez no pub irlandês do indiano que tem como barista um mexicano. Enfim, a lembrança: é quarta-feira. Isso significa que todos podemos andar poucas quadras e terminar a noite em samba, porque uma negra brasileira de voz maravilhosa canta em um buteco de italianos. Sim, tudo termina em samba, como não podia deixar de ser em um mundo globalizado.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Raul e o egoísmo anárquico


Eis que no fim dos anos 60, Raul Seixas chega com seus Panteras no Rio de Janeiro. Ele não sabia que era tarde demais. O som Jovem Guarda que aprendeu a fazer acompanhando Roberto Carlos, Wanderléia e Jerry Adriani em Salvador não é mais o que rola. O que era para ser um sonho se tornou um pesadelo. O disco não vendeu. A banda se desmanchou e o jovem voltou para casa pior do que quando tinha saído.

Reza a lenda, criada e registrada pelo próprio Raul em inúmeras entrevistas, que após a derrocada carioca ele se trancou por um ano no seu quarto. Ali, ele não tinha nada mais que seus discos do Elvis e seus livros de filosofia. Foi um ano de estudo ininterrupto. Dali surgiu outra pessoa. A pessoa que viria a transformar a música popular e, por que não, a cultura brasileira. Não tenho porque duvidar dessa lenda. Aliás é fácil apresentar provas de que ela seja verdadeira. Raul, por exemplo, captou a essência da filosofia revolucionária anárquica. Ele mesmo sempre se disse um anárquico. Como bom revolucionário, deve ter lido Proudhon. Quem sabe algum trecho como esse:

“Segundo o princípio revolucionário, o homem, constituído em estado de sociedade a partir da Justiça que lhe é imanente, não é mais o mesmo que no estado de isolamento. A sua consciência é diversa, o seu ‘eu’ é transformado. Sem abandonar a regra do bem-estar, ele a subordina àquela do justo, tanto que descobre no respeito pelo outro uma felicidade superior, e a seguir a transforma em um hábito, uma necessidade, uma segunda natureza. A Justiça se transforma, assim, em um outro egoísmo. É esse egoísmo, antítese do primeiro, que constitui a honestidade.”

E aí? Deu pra lembrar alguma coisa? Quem é Raulseixista sabe que em pelo menos duas passagens ele faz referência a esse tipo de egoísmo do qual fala o filósofo: nas músicas “Carpinteiro do universo” e “Eu sou egoísta”. A simples conclusão é de que vale a pena parar com a correria da vida, colocar um disco do cara na vitrola, e aprender um pouco com o professor Raul Seixas.

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Proudhon e a revolução individual

“A condição social não pode ser para o indivíduo uma diminuição da sua dignidade, não pode ser nada menos que um aumento. É preciso portanto que a JUSTIÇA, nome com o qual designamos acima de tudo a parte da moral que caracteriza o sujeito em sociedade, seja mais que uma idéia; é preciso que essa seja ao mesmo tempo uma REALIDADE. É preciso, digamos, que essa aja não somente como noção do conhecimento, relação econômica, formula de ordem, mas também como força da alma, forma da vontade, energia interior, instinto social. É razoável pensar que, se a Justiça permaneceu até hoje impotente, isso se deve ao fato que, como faculdade, força motriz, nós a havemos inteiramente mal interpretada; que a sua cultura permaneceu negligenciada; que não há marchado no seu desenvolvimento com o mesmo passo da inteligência; enfim que nós a consideramos como uma fantasia da nossa imaginação ou a impressão misteriosa de uma vontade estranha. É preciso portanto, mais uma vez, que nós sentamos essa Justiça em nós, na consciência, como uma volúpia, um amor, uma alegria, uma cólera; que nós estejamos seguros de sua excelência seja do ponto de vista da nossa felicidade pessoal que daquele da conservação social; que, com esse zelo sagrado da Justiça e com a sua falta se expliquem todos os fatos da nossa vida cotidiana, seus estatutos, suas utopias, suas perturbações, suas corrupções; e que nos apareça enfim como o princípio, o meio e o fim, a explicação e a sanção do nosso destino. Em duas palavras uma FORÇA de Justiça, e não simplesmente uma noção de Justiça, força que, aumentando para o indivíduo a dignidade, a segurança e a felicidade, assegure ao mesmo tempo a ordem social contra a incursão do egoísmo: eis o que procura a filosofia, e fora do que não pode existir sociedade.”

Pierre-Joseph Proudhon, A justiça na revolução e na igreja.

Este é mais um autor que corrobora a idéia de que a verdadeira revolução é individual. De que nos adianta uma revolução feita com a mesma mentalidade de poder que domina a humanidade até hoje? Trocar um poder pelo outro... não nos serve. Somente quando conseguirmos mudar a essência do ser humano, a revolução individual, poderemos ter algo de novo em nossa história e, aí sim, partir para a construção de um novo mundo. O caminho é o pensamento. Pensar nossa essência e descobrir o real valor das coisas (materiais, espirituais, sentimentais...). Para atingir o caminho precisamos, primeiro, parar, esquecer, buscar o silêncio e o nada. Não existem regras. Cada um é livre para escolher sua parte no caminho. Mas para a humanidade é necessário escolher o caminho.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

"Pare o mundo que eu quero descer"

Uma geração que se pergunta constantemente como mudar o mundo. Que se pergunta o que é mudar o mundo. Que se pergunta sobre a possibilidade de mudar o mundo. Que se pergunta o que é o mundo. São tantos. Que caminham por ruas com cabeças nos céus. Não se conhecem. Quando conversam, se encontram. Não vislumbram respostas. Não têm foco. Nada que os possa unir. Nada de ideologias, nada de movimentos. Um exército de solitários sonhadores espalhados pelo mundo. Iguais na sua angústia. Igualdade global. Iguais, talvez, no desejo de parar. De colocar um freio no mundo. Desejo de pensar. De que todos pensem o absurdo que nos tornamos. Espantados com a pequeneza do mundo. Ainda tudo muito novo para conhecer, para se encontrarem. “Pare o mundo que eu quero descer”. Falta de tempo para perguntas, quanto mais para respostas impossíveis. Nada de revolução, de revoltas. Apenas um desejo desesperado de tempo. De conhecer o tempo. De usar o tempo para nada. Desejo de liberdade do tempo. Desejo de encontrar. Qualquer coisa que se possa pensar. Qualquer coisa que valha a pena. Nem que seja um suspiro de vida. Desejo de utopias que sejam nossas. Desejos impossíveis e necessários. Nem que seja para acordar. Para que venha a coragem de abrir os olhos. Coragem para encarar o céu, as ruas, as pessoas. Coragem de buscar um sentido, qualquer que seja. Somos solitários. Nos grupos que sorriem entre copos nos bares, em salas de aulas, nas fábricas e escritórios. Somos solitários e um dia nos encontramos. Percebemos que não temos palavras. Temos desejos tão secretos que não falam. Buscamos. Ainda não. Pensamos. Ainda não. Desejos. Discutimos possibilidades sobre as quais não acreditamos. Jogamos palavras até que... quem sabe. Na confusão algum sentido. Buscamos e pensamos. Ah, se todos pudessem pensar. Antes de tudo, parar o mundo. “Pare o mundo que eu quero descer”.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

Diálogos

- A verdade é que essa selva aqui é só uma palhaçada, uma fachada. Todo mundo imita todo mundo. Essa parada de imagem pega mesmo. A galera é bombardeada todo dia por uma quantidade absurda de imagens e acha que a liberdade é se ajustar a uma dessas imagens, como uma cópia bem feita. A liberdade já é condicionada pelas imagens, ta ligado? Eu, por exemplo, tu, por exemplo, a gente é condicionado pelas capas dos discos dos Ramones, a mina aí meio que quer ser Janis Joplin, o outro brother aqui, sei lá, um personagem dos filmes de colégio da sessão da tarde, aqueles anos 80. Ninguém tem seu próprio estilo. Eu nem faço idéia do que seria ter um estilo próprio. O que significa “ter um estilo”?

- Cara, fez efeito essa tua parada, hein?

- Ô meu, nem fala. To me mordendo todo. Mas o lance é esse: somos todos cópia de alguma outra coisa. É como o Rock`n`Roll, chegou num momento que sempre vai ser cópia de alguma outra coisa. Não dá mais pra inventar nada, se o cara inventar qualquer coisa já não é mais Rock`n`Roll. Nós estamos condenados a viver uma vida de imitações. O que pra mim é, sei lá, tudo bem. Nem me preocupo muito com isso. Eu gosto de andar com a minha jaqueta de couro. Só não quero que venha qualquer idiota me dizer que é original, que tem um estilo próprio, porque é mentira. E ta cheio de babaca por aí que penteia o cabelo pro lado e acha que descobriu a América......

Deve ser bom mesmo o produto. Da minha parte, me conservo mudo pra não fazer a cagada de cuspir o ácido. O bar continua igual. Todo aquele desfile que inspirou o discurso do amigo continua a passar pela nossa mesa. O balcão lotado. As paredes, sim, as paredes, absorvendo mais uma camada de fumaça. Os cartazes de shows que não param, como se algum deles fosse virar uma estrela do Rock. A luz amarela constantemente amarelada, caramelizada. Como todos os drinks em copos longos, curtos, garrafas, ampolas. A mesa, pobre mesa. Que já viu milhares de cenas como essa e tem seu destino traçado. Fará companhia a cotovelos inexperientes ou cansados até que o fogo a consuma. Sobre ela um par de mãos quase perfeito. Sem pinturas. Com veias. Lisas. Que se desdobram em pulseiras e penugens. Que conduzem a um rosto de sorriso constante, confiante, eletrizante, marcante, ante, ante.....

- Ô meu, ta ouvindo?

- Ãh?

- Eu perguntei: então, qual é a revolução?

- Ah, a revolução. A revolução é individual, a revolução do individualismo perfeito. Ta ligado que sempre nos ensinaram a ver o individual e o coletivo como dois lados de uma moeda. O lance é acabar com essa porra dessa moeda. O individual só vai ser pleno quando for coletivo; o coletivo só será livre quando for individual. Raulseixismo. “O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”. Revolução é tocar o pé no freio com tudo. Silêncio. Pensamento. A revolução será possível no dia em que todos puderem fazer sua revolução individual. No dia em que ninguém precisar mendigar por uns trocados ou morrer de medo atrás de uma cerca elétrica. O primeiro passo é a certeza do absurdo que se transformou nossa parada. Revolução não tem nada a ver com o poder, tem a ver com gente.

- E tu mina, o que me diz?

- Eu digo que vocês são craques da filosofia de bar. Mas não se dão conta que isso é só um supermercado de idéias. Vendem idéias como sabão em pó. Ninguém se dá conta que o produto é o mesmo, e seguem criando embalagens cada vez mais chamativas para vender sua própria idéia. A lógica do mercado está tão presente na vida que é difícil perceber. Ou por acaso não procuramos todos a mesma coisa: felicidade? E todas as idéias de mudar o mundo são exatamente a mesma...

Felicidade, prazer, nós dois numa cama. E tudo termina em sexo. E desilusão. Prazer é felicidade? Ou o primeiro passo para o êxtase da melancolia? Uma boca assim fina, delicada, falando coisas difíceis. Fáceis de entender. Idéias prontas. De onde vieram essas idéias prontas? Se pudesse mergulharia nessa alma. Em todas as almas. Descobrir os segredos profundos. Aqueles fantasmas que se escondem debaixo do travesseiro. Do lado oposto das palavras. Ah, meu deus, me ajude, porque a viagem apenas começou.

- Aí, vou no banheiro.

terça-feira, fevereiro 01, 2011

Salto no desconhecido

Paixão por livros. As ferramentas que nos ajudam a abrir os horizontes do mundo. Entender e duvidar, questionar, observar e descobrir os segredos de pequenas passagens que insistem em nos surpreender. Existem coisas sobre as quais não podemos falar. Quem diz é o cozinheiro bangla que toma uma cerveja depois do expediente de 10 horas sem intervalo, sentado na escadaria de um prédio escondido entre ruas desertas de uma cidade que dorme no frio. “Não podemos falar sobre a felicidade. Ela vem do coração, e o coração não se comunica por palavras. Nós não pensamos a felicidade. Ela aparece e some antes de se tornar palavra”. Um cozinheiro. Que esqueceu por um momento sua vida de merda. Que conhece o segredo dos livros mesmo longe das bibliotecas. Quem é capaz de encontrar as palavras do coração? Aquelas que estão do lado oposto de qualquer tipo de lógica racional? Aquelas que dão o verdadeiro sentido da vida, que transformam a vida? Que tipo de conhecimento é esse que perseguimos sem jamais alcançá-lo? Talvez seja o tipo de conhecimento capaz de mudar alguma coisa de verdade. O mesmo pelo qual procuraram os grandes humanos que tentaram falar com o coração. A imensa quantidade de livros que mudaram e ainda mudam vidas. Porque o mundo é uma vida. Devemos agradecer a todos aqueles que, geração após geração desde o princípio da humanidade, lançaram suas próprias vidas no desconhecido e tentaram procurar as palavras que lá se escondem. Caçadores de palavras. Arquitetos malucos que projetam pontes entre o coração e a mente. Que derrubam as pontes conhecidas pelo simples prazer de criar a necessidade de novas pontes. A revolução do desconhecido. E não duvidem: é ali que está o nosso futuro. E ele é para todos, ou pelo menos para aqueles que tiverem coragem de saltar no desconhecido.