Não tem outra expressão melhor: frio do caralho. O termômetro marca -2 graus mas a sensação é de -5. O que não faz a menor diferença. Ou por acaso alguém pensa que -2 é mais confortável que -5? Nem o sol faz diferença. São 11 horas da manhã no centro do mundo ocidental, a base da nossa civilização racional e humanista. Enquanto os filhos de uma Itália do passado circulam, em meio a turistas e a nova geração sem futuro, alguém tenta ganhar a vida. São africanos, árabes, latino-americanos e estudantes, estes últimos a raça mais discriminada do país. Para pagar as contas e comer eles se sujeitam aos subempregos do mundo desenvolvido. Nesses dias de frio do caralho, o pior deles é a panfletagem. Três horas parado numa esquina congela até a alma, para ganhar sagrados 6 euros por hora de tortura. Depois de meia hora a mão direita não sente mais nada. Já se distribui os panfletos de 2 em 2, 3 em 3. E a cara de nojo. Chega a ser engraçado. Parece que o cidadão que distribui o papelzinho de propaganda tem uma doença contagiosa. Como se não estivesse frio o suficiente ainda tem que agüentar a mal educação dos outros. Pega a porra do papelzinho e joga na lixeira, mas ajuda o vivente que está ali parado como um verdadeiro bloco de gelo. Tem aqueles que nem olham, outros que agradecem, mas não pegam. O pior, porém, são aqueles que tiram a mão do bolso e fazem que não com o dedinho enluvado e aquecido. Se não quer pegar porque ta frio, nem tira a mão do bolso, filho da puta. Tudo bem, que se foda. Falta só mais uma hora. A essa altura as pernas também já congelaram, mesmo com três calças e duas meias em cada pé. Relógio a cada dois minutos e os ponteiros ali, parados. Parece que também estão rindo da desgraça alheia. De repente chega uma velha com cara de boa senhora.
-É meu filho, vocês são o futuro da Itália.
-Pois é senhora.
-No meu tempo ninguém precisava fazer isso pra viver.
-Pois é senhora.
-Nosso país não é mais o mesmo. Uma vez as pessoas estudavam de graça, depois arrumavam emprego, podiam sustentar a família com dignidade. Tu é estudante, né? Eu sabia. Hoje em dia é assim. Mas não te preocupa. As coisas vão melhorar.
-Pois é senhora.
-Sabe que meu filho também começou assim. O primeiro emprego dele foi distribuir panfletos para poder pagar a universidade. Agora ele trabalha na administração de uma empresa faz oito anos. Eu sei que vocês vão conseguir.
-Pois é senhora.
Graças a deus a velha foi embora. Se o cara que circula fiscalizando os panfleteadores pega uma conversa dessas o cara ta fudido. Aí a Itália antes de não ter futuro já perde o presente e ganha mais um mendigo nas ruas. E tem mais, diz pro administrador lá que o negócio ta ruim e que ele se lembre da merda que é ficar na rua com -2 graus quando pedir “experiência”, “diploma” e “conhecimentos técnicos” aos jovens que buscam um emprego na sua firma. E enfim chega ao fim. Deus abençoe as bibliotecas públicas com calefação. A mão dói quando o sangue volta a circular. A tremedeira começa a diminuir e o cara descobre que está todo sujo de ranho porque não sentia a cara pra saber se estava escorrendo ou não. E isso garantiu mais 20 euros para as contas da família. Com isso dá pra pagar 1/45 da prestação da faculdade. Não dá nada. O importante é voltar pra casa e tomar um banho, porque daqui a duas horas começa o turno de garçom no bar. E já que estamos citando deus e estamos no centro do mundo católico: que ele abençoe os escravos da civilização, o futuro da nossa humanidade.
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