A vida é simples, ou pelo menos deveria ser. Simples como a alegria por um dia de sol depois de duas semanas cinzas e vividas e meio a blusões de lã, meias duplas, ceroulas e todas as jaquetas possíveis. Só uma “nesga” de sol entre os prédios, e as pessoas se acumulam em escadarias centenárias no meio da tarde para simplesmente fazer nada. Um meio sorriso de satisfação brota ao sentir os ossos um pouco mais quentes. Partes do corpo que pareciam mortas ressurgem, células voltam ao seu metabolismo e a vida aos poucos fica mais colorida. Parecemos loucos encostados na parede de um castelo tentando acompanhar o movimento do céu. As imagens da cidade começam a ganhar forma, os olhos vagam pela praça e a falta de sentido cotidiana.
Um outro grupo surge à vista. Parece mentira, mas não é. A terra de Fellini proporciona dessas coisas mesmo longe dos cinemas. Um palhaço sobe numa banqueta e prepara seu discurso. Na platéia jovens estudantes, desocupados, alguém que aproveita seu caminho para ouvir alguma boa piada, aposentados. O sorriso eterno de uma face maquiada não esconde as marcas do tempo e de uma vida sem graça.
“Nós estamos presos a esse mundo. Quem de vocês sabe alguma coisa sobre liberdade? Eu fui caçado de praças como essa. Eu vi o mundo mudar e não se transformar em coisa alguma. Eu sou a dor e o alívio da dor. Eu queria vender sorrisos e me denunciaram como subversivo. Eu gostaria de viajar, mas me disseram que não tinha dinheiro. Eu fui com meus próprios pés e quase morri. Ninguém quis saber de mim, e aqui estou. Vocês discutem o que existe de errado e eu lhes digo a verdade. Tudo está errado. Nada está errado. Eu sei, é difícil admitir. Nossa alma está fora da realidade, da razão. Não precisamos mudar nada que esteja fora dos nossos olhos. As coisas continuarão a existir. As pessoas continuarão a passar. Eu vi e lhes digo. Eu não quero ser normal. O normal fez seu irmão sofrer. Eu não quero ser normal. O normal virou a face a seu irmão. Eu me pinto um sorriso mal feito todas as manhãs para mostrar e que escondo. Eu nunca produzi nada. Eu nunca fiz nada. Eu tenho a verdade e quem quiser que corra por ela. Vocês nunca vão alcançá-la. Ela só pode ser brevemente vislumbrada por quem tem olhos especiais. Ela não está aqui. Não está em nenhum lugar. A verdade é a verdade que se esconde sempre atrás de nós mesmos. Eu ganhei meus olhos com a vida. Quem se julga sábio o suficiente que procure o mesmo. Fim.”
E então acabou o sol. A platéia se desfez em direção às casas bem aquecidas, aos ônibus, aos bancos da universidade. O palhaço ainda ficou um pouco ali. Ninguém mais quis saber das suas verdades. Ele sorriu por detrás da máscara, abriu seu guarda-chuva e começou a dançar rumo aos seu destino, distribuindo balões para as crianças.
Por um momento não me interessei mais por livros, filmes, ou qualquer outra coisa que tinha em mente. Queria ser um palhaço. Queria contar histórias e conhecer o truque de brincar com a verdade. Senti qualquer coisa no olho. Talvez uma fumaça do cigarro, talvez um raio perdido de sol... ou talvez apenas alguma coisa que nunca tenha sentido antes de sair para a rua e ter parado para ouvir um palhaço.
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