Sobrevoou sua cabeça gritando o quero-quero e se perdeu no campo sem fim. "Chegou o momento, é agora, daqui não passa". Uma satisfação percorreu seu corpo enquanto seus olhos miravam o que havia restado do pampa. Pensou na mulher, que a esta altura devia estar lavando a louça do almoço, quieta e resignada no seu papel de mulher. O calor de fevereiro tornava turva a imagem do horizonte, que se sabia seco depois da coxilha. O famoso deserto gaúcho.
Estava em alguma parte de Alegrete, onde exatamente não saberia responder. Sua estância era um deserto no meio do nada, ninguém conhecia, talvez nem existisse, nem em mapa, nem em memórias. Há anos ninguém passava por ali. Bicho nenhum ousava atravessar esta terra.
Esfregou as mão num gesto de prazer enquanto se levantava, mas voltou atrás. Seria melhor esperar, deixar os corações baterem um pouco mais.
Como dizia, há muito tempo que o gado não pisava nesse pasto ralo. Os que não morreram de fome, morreram do tédio do proprietário. Não só boi e vaca, mas também ovelhas, cabritos, porcos, galinhas já viveram e padeceram manchando com sangue o solo quase amarelo deste pedaço de Rio Grande. Tudo para transformar o marasmo do estancieiro em alegria e poder. Ele que agora estava ali, inerte, com a vista fixa nas ondas de calor. Olhos sem expressão, mas que brilham de fogo quando o líquido bordô escorre sobre o pêlo dos animais e pinga viscoso na terra. Olhos que vibram com mais uma vida que se perde em suas mãos. Matar é o último prazer, o último refúgio. Vidas em jogo, vidas suas que determinava o fim assim que lhe parecesse caber o fim. Matar e deixar a carcaça à intempérie para virar carniça e transformar o ar inerte do verão.
Acabava-se o mate, contando o tempo para o fim de mais uma de suas vidas. Inquieto, raspava a unha do indicador contra a verruga do polegar na esperança de um aperitivo vermelho para sua bombacha cinza. O ronco da última cuia marca o veredicto. Numa cerimônia solene levantou de sua cadeira, afivelou a guaiaca, aprumou o chapéu e iniciou a marcha rumo ao destino que escolhera estar em suas mãos.
Sob a soleira da porta observou o deserto de dentro, silêncio cortado por estalos de madeiras que se ajustam ao calor. Nos passos metálicos de esporas cresciam o terror e a euforia, visíveis no alargamento dos lábios em um sorriso macabro. Pisou forte na lajota da cozinha. A mulher virou-se, e com uma faca na mão lhe estendeu o cabo. Ele então segurou o instrumento, olhou seu reflexo na lâmina afiada, e num movimento brusco cravou-a no bucho daquela quase ex-vivente. Nos olhos espremidos de dor sem mágoa viu-se satisfeito com mais um espírito que desencarnava. Terminado o êxtase livrou-se daquele monte de carne e osso sem razão do lado de fora, sob o sol de verão.
Estava em alguma parte de Alegrete, onde exatamente não saberia responder. Sua estância era um deserto no meio do nada, ninguém conhecia, talvez nem existisse, nem em mapa, nem em memórias. Há anos ninguém passava por ali. Bicho nenhum ousava atravessar esta terra.
Esfregou as mão num gesto de prazer enquanto se levantava, mas voltou atrás. Seria melhor esperar, deixar os corações baterem um pouco mais.
Como dizia, há muito tempo que o gado não pisava nesse pasto ralo. Os que não morreram de fome, morreram do tédio do proprietário. Não só boi e vaca, mas também ovelhas, cabritos, porcos, galinhas já viveram e padeceram manchando com sangue o solo quase amarelo deste pedaço de Rio Grande. Tudo para transformar o marasmo do estancieiro em alegria e poder. Ele que agora estava ali, inerte, com a vista fixa nas ondas de calor. Olhos sem expressão, mas que brilham de fogo quando o líquido bordô escorre sobre o pêlo dos animais e pinga viscoso na terra. Olhos que vibram com mais uma vida que se perde em suas mãos. Matar é o último prazer, o último refúgio. Vidas em jogo, vidas suas que determinava o fim assim que lhe parecesse caber o fim. Matar e deixar a carcaça à intempérie para virar carniça e transformar o ar inerte do verão.
Acabava-se o mate, contando o tempo para o fim de mais uma de suas vidas. Inquieto, raspava a unha do indicador contra a verruga do polegar na esperança de um aperitivo vermelho para sua bombacha cinza. O ronco da última cuia marca o veredicto. Numa cerimônia solene levantou de sua cadeira, afivelou a guaiaca, aprumou o chapéu e iniciou a marcha rumo ao destino que escolhera estar em suas mãos.
Sob a soleira da porta observou o deserto de dentro, silêncio cortado por estalos de madeiras que se ajustam ao calor. Nos passos metálicos de esporas cresciam o terror e a euforia, visíveis no alargamento dos lábios em um sorriso macabro. Pisou forte na lajota da cozinha. A mulher virou-se, e com uma faca na mão lhe estendeu o cabo. Ele então segurou o instrumento, olhou seu reflexo na lâmina afiada, e num movimento brusco cravou-a no bucho daquela quase ex-vivente. Nos olhos espremidos de dor sem mágoa viu-se satisfeito com mais um espírito que desencarnava. Terminado o êxtase livrou-se daquele monte de carne e osso sem razão do lado de fora, sob o sol de verão.
Chegava ao fim, havia agora só mais uma vítima.
2 comentários:
Massa!
Esse conto é das antigas... foi o premiado na Academia Caxiense de Letras, certo?
Não, esse eles jogaram no lixo.....
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